A cidade: ocupe e ame ou ame e ocupe?

Estamos cercados por instituições por todos os lados. Fazem parte da construção da história. São invenções contínuas, com permanências e descontinuidades surpreendentes. Não há como viver as sociabilidades sem regras e negociações. Quem pode celebrar a falta de limites como uma conquista? As utopias conversam sobre prazeres, mas não deixam de assinalar que há o outro, que não somos o centro do mundo. Lembrem-se do triângulo primordial: Adão, Eva e a serpente. Ele tem um simbolismo imenso. Atravessa tradições seculares. Firma culpas, consolida perdões. Distribui uma transcendência que confunde. Fabrica uma origem que talvez nem exista

A modernidade trouxe ansiedades não vividas. Há misturas entre acontecimentos históricos, reflexões, mercados comerciais, crenças religiosas, reflexões filosóficas. A Reforma abalou o catolicismo, os iluministas exaltaram a razão, os sonhos se ampliaram. Apostavam que os mistérios e pecados caíssem diante das astúcias dos conhecimentos científicos. O sagrado e o profano tomaram posições de conflitos. As tensões existem até hoje. A cidade se tornou um cenário de dissidências. Apesar do Estado- Nacional, ninguém esquece de Londres, Paris, Veneza, Florença, Lisboa… Os debates configuram corporações e projetos de mundo. Os intelectuais se posicionam, alguns disfarçando interesses políticos ou pragmatismos, aparentemente, rebeldes.

As cidades centralizavam polêmicas e exibiam o novo, o moderno, as ambições de ultrapassar limites marcados pelo mundo rural. A ideia de felicidade ganhava corpo, mas havia também desconfianças. Tédios, dúvidas, modas, invejas, romantismo. anarquia, socialismo, capitalismo… A modernidade é abertura para outras experiências, trilha pedregosa. Isso não significa sufocar a memória. Seria possível descolar-se das culturas grega, romana, judaica? E os conflitos entre impérios violentos, a busca de espiritualidade, a magia do encanto de palavras e lendas?  Engana-se quem pensa em sepultar tanta coisa, esfarrapar a memória.

Houve transformações rápidas, reforçadas com a tecnologia e a vigilância para assegurar a qualidade do trabalho assalariado. O descartável chegou com suas novidades. Muita gente, riscando os asfaltos, negando afetos conservadores. Os professores ensinam verdades salvadoras. Quem sabe a sociedade retomasse o paraíso sem serpentes e escorregões? A cidade , funda arquiteturas, especialidades, especulações. O dinheiro circula para que o fetiche da mercadoria não se desgastasse. É preciso fascinar, jogar com as emoções, concentrar individualismos, sofisticar o  afeto.A cidade é ocupada nos detalhes, território de conflitos e malabarismos financeiros. Denuncia-se que a paisagem muda, a qualidade se esvai e a acumulação se estende.

Porém há quem garanta outros caminhos. Não há espaço para homogeneidade. Quem pode sabe, quem sabe pode. A cidade é a moradia, contudo se veste com os ornamentos das mercadorias. Amar a cidade não seria amar a moradia? Maltratar a cidade não é um suicídio, uma fragmentação contínua? Algum planejamento foge do conceito de monitorar?  Ocupa-se, sem se questionar que não existe o vazio pleno. Nem tudo é concretamente visível.Temos que repudiar a lógica da especulação. Resistir sem máscaras.  Descartes, no seu tempo, disse “Penso , logo existo”. E nós estamos repetindo, desfazendo, ou reformulando o show do eu? A cidade possui espelhos. Perdê-los é o fim, diante de especializações minuciosas e trôpegas.

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6 Comments »

 
  • Ana Flávia disse:

    Fantástico!

  • Ana

    Grato.
    abraço
    antonio

  • João Paulo Lucena disse:

    Gosto muito dos seus textos sobre cidade, professor. E como o senhor falou, infelizmente a razão instrumental a tem transformado sob a lógica da sociedade unidimensional. O tratamento, “tapa-buraco”, “requalificação”, etc., não parece acompanhar demandas humanas e naturais, e sim do capital. Daí o paradoxo: “algum planejamento foge do conceito de monitorar? Ocupa-se, sem se questionar que não existe o vazio pleno.” A afetividade do lugar cede, pois, à frieza do espaço, onde “a qualidade se esvai e a acumulação se estende.” Ao meu ver, a cidade retira o imprescindível do bem-estar: o Tempo. O tempo de ser, de lazer, de descanso, de cuidar. Simulacro contra o qual a astúcia da gente luta, das mais diversas formas. Ainda bem.

  • João
    Falta cooperação. Tudo funciona na propaganda. Políticas das desigualdades.Grato.
    abraço
    antonio

  • Carolina disse:

    Muito bom professor. É no espaço da cidade que configuramos nossas experiências sejam elas de felicidade ou decepção. No entanto, todas sao válidas.
    Abraços.

  • Carolina

    É o espaço que temos de cuidar, para a vida seja mais leve.
    abs
    antonio

 

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