A cidade tem afetos e pertencimentos

 

Há uma busca pela acumulação de grana que desfaz a história e inquieta. Não há transparência e existem  articulações frequentes de projetos individualistas com o poder público. As promessas são muitas e almejam significar compromissos para construção do novo. A velha questão da modernidade volta ao debate e as máscaras do progresso disfarçam discursos. A cidade sofre ataques constantes da especulação imobiliária que deixam desconfianças permanentes. Os investidores ganham , muitas vezes, com seus ares de seguidores de filantropias que mudarão o chamado atraso urbano.

A quantidade continua prevalecendo. A montagem da modernidade mantém sua ambiguidade. O capitalismo festeja sua vitória e procura afirmar-se com cuidados bem tramados. Exalta gestões, discute planejamentos. A cidade se enche de construções que negam a qualidade do viver e quebram as energias afetivas que animam o coletivo. A grande quantidade de prédios faz parceria com o estímulo à compra de máquinas velozes. Perturbam o cotidiano. Uma mistura que desengana e coloca o futuro sob suspeita.

Não existem consensos sobre essas ações, mas elas não são bem recebidas por parte expressiva da população. Há quem se encante com as novidades e nem se toque com o desfazer de memórias. Ainda se embriagam com o progresso narrado pelos que se comovem com geometrias que escondem abismos e explorações sociais. A cidade se transforma, torna-se desconhecida para quem se descuida de observá-la e não se incomoda em dialogar com seu passado. Há uma luta política que mobiliza grupos e sedimenta projetos de racionalidades duvidosas.

A imprensa divulga os embates. Os contrapontos são muitos. As verdades dominantes se vestem rapidamente de argumentos. Os jornais expressam os planos fabulosos dos consórcios. Cria-se uma confusão nos valores. Qual será a cidade que queremos? Quem escolhe os caminhos da coletividade? Por que a proximidade crescente do poder público com as manobras do capital? Os debates são seguidos de liminares, de desencontros jurídicos, acampamentos rebeldes. As expectativas agitam, atiçam cinismos, escondem pressões ditas superiores.

Sempre insisto que a cidade é a nossas moradia.  Se ela é povoada por violências, ganâncias, privilégios, desejo de minorias, há  esvaziamentos da solidariedade e  estranhamentos que se avolumam. Somos animais sociais, animamos invenções, fabricamos culturas, mas também estamos envolvidos por preconceitos e egocentrismos. A história é complexa e as dissonâncias se ampliam. É difícil formular pactos e a política se profissionaliza com cargos especializados e pouco interessados em repartir benefícios.

A cidade perde seus pertencimentos que poderiam estreitar conquistas culturais e multiplicar espaços de encontros. Suas arquiteturas, muitas vezes, cultivam a solidão e a concorrência. Ser moderno não é concretizar o delírio do descartável. É preciso que haja permanências, identidades que não fujam de forma efêmera. Se a sociabilidade se desfia, o cotidiano se afasta dos abraços e configura um jogo de negociações para concentrar riquezas. Quem costura a história pode também vesti-la de farrapos, apagar a luz e fortalecer as sombras, adormecer no leito duro do concreto armado.

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14 Comments »

 
  • Marcus disse:

    Reflexão lúcida e inquietante.
    Parabéns e sigamos em frente.
    Marcus

  • Marcus

    Muito grato.
    abs
    antonio

  • […] compartilhado no FB pela amiga poeta e blogueira pernambucana, Márcia Maracajá, está no blogue A Astúcia de Ulisses: é da lavra de Antônio Rezende, também professor da federal. Ambos traduzem bem o  sentimento […]

  • ana da fonte disse:

    Olhar lucido de quem tem afeto por nossa cidade

  • Reflexão conectada com as inquietações pertinentes. A cidade precisa de espaço para respirar, encontrar pessoas, se entrelaçar caminhos. Com certeza, o excesso de concreto mata tudo isso.

  • Nossa cidade precisa de espaço para respirar, encontrar pessoas, se entrelaçar caminhos. Com certeza, o excesso de concreto mata tudo isso.

  • Onilda
    A cidade termina sufocada com tanto concreto. São precisos ar e perfume.
    abs
    antonio

  • Onilda

    Grato, Onilda, pela leitura. Vamos cuidar da cidade.
    abs
    antonio

  • Ana
    O afeto vale muito.Vamos cultivá-lo.
    bjs
    antonio

  • Sulamita

    Abraços,
    antonio

  • Cecilia disse:

    Belo texto, professor. Sua reflexão atiça questionamentos e revela a atualidade do debate sobre modernização, modernidade e progresso.

  • Cecília

    Grato pela palavras.
    abs
    antonio

  • Kbção disse:

    Olá, Antônio. Passando por aqui para lembrar que Marina, desde o Cretáceo, está para te emprestar um livro bem interessante. Sobre o post em si, gostaria de saber se existem pesquisas sobre a recepção do tal projeto pelos interessados em primeiro plano, aqueles que moram ou possuem negócios no entorno da área, que me parece um tanto abandonada e entregue à própria sorte.

    Abraço

  • Guilherme
    Tudo bem ? Existe uma página chamada Direitos Urbanos, no face, que apresenta a discussão sobre o assunto. Dê uma olhada. Com certeza, é preciso fazer alguma coisa. Mas não acho que a saída seja construir torres. Poderia ser algo mais coletivo e leve. A mobilização vem acontecendo e muitas gente já fez projetos alternativos. Temos que pensar na cidade e nas pessoas que ficam na área. Concordo.Elas também têm participado das mobilizações. Estamos construindo uma sociedade muito consumista. Isso vai estourar um dia. Grande competições que atiçam invejas e egoísmos. Espero que haja mudanças para uma sociedade mais afetiva.É um desejo e é como sempre pensei a educação , inclusive dos meus filhos e alunos.Difícil, porém não custa tentar.
    abs
    antonio

 

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