Amargas memórias movem a política e o ressentimento

A história segue caminhos. Não dá para firmá-los, determinar que o mundo se modifique brevemente. Tudo tem o perfume perigoso do mistério. Na contemporaneidade, as tensões continuam assustando as relações internacionais. Há guerras espalhadas com requintes de violência trazidos pela tecnologia. Ninguém  se esquece das bombas atômicas, das vítimas, do poder que aciona vinganças justificadas por banalidades. A memória guarda, deixa incertezas e anula utopias. Canta-se o êxito de progresos, porém há arrogâncias distribuídas e privilégios que exaltam minorias. Portanto, é difícil sentir renovações nos comportamentos quando as tensões ocupam políticas e reforçam ressentimentos.

Não há negar que a memória ajuda a descobrir saídas e lembra a necessidade de punir crimes. Busca-se um equilíbrio, uma janela aberta para uma paisagem cheia de luzes. A questão não se resume  às disputas entre as nações. Nas cidades, nos becos, nas favelas, nos clubes sociais, nos congressos, movem-se culturas nem todas conjugadas com a solidariedade. As tensões se metem pelo cotidiano, são anunciadas nas TVs, enquanto você procura descansar ou distrair-se com tolices. Muitos lutam, mostram os descontroles, outros asseguram seus cargos, nem percebem a dimensão pública dos seus fazeres.

Os debates sobre a memória se acendem quando fatos históricos são colocados na berlinda. Deveriam ser mais frequentes, no entanto o jogo de interesses flutua com rapidez. Os vestígios de março de 1964  sempre atiçam contrapontos.  Existem os saudosos, envolvidos por uma defesa de uma ordem mítica e dissolvente dos sinais de democracia. Temos polêmicas, mas é importante que se focalizem os limites, se sacudam a poeiras das opressões e  se fortaleçam a necessidade de se criar liberdades e sonhos  singulares. Vivemos numa sociedade de incompletudes, porém os significados das controvérsias merecem ser recordados. Os chamados grandes acontecimentos não estão isolados. Entrelaçam-se com outros tempos e se infiltram no dia a dia.

Fazer da história uma coleção de fatos e homens ilustres apaga o desejo de reflexão e enfraquece a crítica. Quando os olhares se voltam, apenas, para datas, olvidamos que há uma construção permanente de valores. Avivar os contrapontos, observar os individualismos crescentes e o esvaziamento das sociabilidades coletivas redefinem os encantos e as amarguras da memória. Lembrar e esquecer são movimentos constantes, desenham pedagogias, não consagram neutralidades. Quando certas escolhas ganham espaço alguém perde. Daí, o acúmulo de violências silenciadas, prisões superlotadas, cinismos políticos crescentes.

A verdade não é absoluta. É uma referência que dirige atitudes e interpreta projetos. Anda numa corda bamba, porém não há como dispensá-la. O erro é consagrar paradigmas invioláveis, acomodar-se nas redes do conformismo. Os genocídios demonstram que a paz não é o símbolo da convivência social. A memória não se cansa. Ela empurra a história e fornece estímulos para compreender seus embates. As datas incomodam com inquietações e julgamentos. O medo da repetição é uma ameaça. Não custa, contudo, espertar as ideias e não esconder as astúcias que nos cercam. Há quem procure desmanchar os vestígios, confundir os tempos. A história não foge dos territórios da luta e nem todos se vestem para dissimular a nudez.

 

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4 Comments »

 
  • João Paulo disse:

    É sempre bom quando o senhor escreve sobre a memória e os seus desdobramentos na sociedade. É uma área que tem crescido muito na historiografia contemporânea, tanto no que diz respeito à teoria, quanto na prática da história oral. E antes mesmo de objeto de estudo, a memória desperta o interesse de todos pela simples e, ao mesmo tempo, complexa dialética do lembrar esquecer. E é como o seu próprio texto deixa claro: ela tem essa capacidade de mover e estancar a narrativa histórica. Mas não é uma força intrínseca, e sim relacional: são os pesquisadores e, sobretudo, as pessoas extraordinárias, de um mundo que se quer ordinário, que empreendem/revelam os mais ricos e surpreendentes registros de um passado individual e coletivo. Uma memória marcada, inventada, reconstruída… Uma memória em movimento! Memória boa, memória ruim. Memória agridoce! Memória que apaixona e aprisiona… ai ai

  • João
    Gostei das suas reflexões. Claras e atuais. A memória é um assunto que nos move. Apontou bem a importância do tema e com desenvoltura.
    abraços
    antonio

  • Carlos Alfredo disse:

    ” e o esvaziamento das sociabilidades coletivas ”

    Essa frase me chamou atenção. Não é necessário buscar nos devaneios sobre a história alguns significados para ela. Numa visualização micro, basta observar a UFPE, pensar no CFCH… e logo se percebe que ela é verdadeira e grave quando se materializa num centro de filosofia e ciências humanas que tolhe as sociabilidades em sua própria arquitetura, reforçada por uma diretoria que arranca bancos sociáveis e mantém o prédio numa reforma que parece já durar uma década. É irônico um Centro de Humanidades que delimita a humanização e recorta as sociabilidades em si mesmo.

    A luta contra essa sua frase poderia começar pelo seu próprio Centro Professor. Mas quem está disposto a comprar verdadeiramente essa luta, para além de elucubrações floreadas por belas e encantadoras palavras?

    Há braços!

  • Carlos

    Suas razões são claras e muito em cima da questão. Tenho falado nisso em sala de aula e com os outros professores. Uma fragmentação grande que perturba a convivência.Não pense que isso não é colocado. Não bastam apenas as palavras encantadoras.Concordo.Faltam mais motivação e compromisso.Com certeza, há caminhos nas escritas e na luta cotidiana, porém o invidualismo se espalha e se disfarça na forma de ver o conhecimento como acumulação e no desprezo pelo cotidiano. Por isso, pode se falar em ironia que também se estende nas muitas ambiguidades universitárias.Grato, pelas reflexões.
    abs
    antonio paulo

 

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