As lembranças se penduram na vida e no ritmo

 

Há lembranças que não deixam de aparecer. Trazem aberturas para o passado. Gosto de reparti-las. A satisfação de construí-las não deve ficar dentro de esconderijos. Balançar a vida é animar a gangorra e aproximar-se do querer-bem. Nos anos 1960, estava entrando na adolescência, como dizem os educadores. O mundo fervia e minha cabeça não sossegava. Não faltavam sustos. Sempre tive medos de fantasmas e procurava não dormir sozinho. 1962 veio a vitória na Copa do Mundo.Vibrei muito. Minha paixão pela bola me acompanha e sacode meu coração, sem precisar de muitas metafísicas. Aquelas imagens, dos dribles de Garrincha, não me abandonaram.

Nem tudo simboliza alegria. O golpe de 1964 foi um sufoco e uma perda política. Nunca aprovei nada que ofuscasse o desejo de liberdade. A repressão cortava sonhos e intimidava esperanças. Ficava amargurado, observando outras pessoas se sentindo contempladas com a violência e os discursos da salvação nacional. Há quebras que compreendia, mesmo com as confusões e os cercos familiares. Não simpatizava com o golpe e mostrava minha inquietude. Ele firmou-se e chegou aos anos 1970, apesar dos desacordos e a vontade de luta de outros grupos sociais rebeldes. Caminhos  cruzavam-se e chocavam-se. Os ruídos não foram poucos.

As recordações se estendem, atravessam planícies e pulam abismos. A guerra do Vietnã tensionava as relações internacionais. O gigante norte-americano sofria com as resistências dos vietcongs. Os debates eram intensos, as armas bombardeavam produzindo genocídio, mas a vitória dos Estados Unidos terminou não acontecendo. Muitas perplexidades, misturadas com ousadias, fazendo a sociedade olhar seus contrapontos com ansiedade e desânimo. A história arrasta desequilíbrios e, também, desfaz arrogâncias.Tudo isso passa, em segundos, na minha memória. A síntese abstrai detalhes, porém não apaga emoções. Assistia, na TV, a um concerto em homenagem a George Harrison, mergulhando no ritmo dos Beatles. Junto mim, parte da família, atenta e deslumbrada.

Silêncios, harmonias, falas soltas. Os sentimentos não se distanciavam.  Via-me, em outras situações, e me encantava. Todos estavam confraternizando-se no mesmo ritmo. Uma tarde chuvosa de domingo, depois de um longo almoço, dividir momentos, tão incomuns, avivam energias. É preciso descanso, para suportar as notícias insistentes que provocam dores e desenham sinais de apocalipses. As nostalgias não revelam, apenas, desconfianças com o presente. Nossa tarde musical, começou com um pedido de uma criança de dois anos. Ela é fã das músicas dos Beatles e as curte com afeto e paciência. Era um ritual.

Como os tempos se entrelaçam e criam diversidades incríveis? Como a morte e a vida se estranham, em algumas fantasias, e pensamos haver conquistado a eternidade ? Uma vez, escrevi um texto sobre o desacontecimento. Tentava seguir trilhas que me livrassem do extraordinário. O toque do diferente me seduz, desde que  seja compartilhado e não guarde traços do  aparentemente imposssível, porém se envolva  com a sensibilidade, sem justificativas intelectuais. A frieza e a objetividade não me causam bons alentos. A música de George e a guitarra de Eric Clapton transcendiam. O som nos iluminava, sem a necessidade de esforço, nos carregava para uma meditação involuntária. O tempo não exigia nenhuma medida. Flutuava.

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12 Comments »

 
  • Gleidson Lins disse:

    Beatles… O que dizer quando uma criança de dois anos hoje, quarenta anos após a banda deixar de existir e Lennon soltar uma de suas frases embriagantes (“The dream is over”), pede para ouvi-la?
    O sonho não acabou. A boa música é eterna.

  • Gleiddon

    Há sempre espaço para o encanto. O sonho vai, mas não fica longe.
    abs
    antonio paulo

  • Flávia disse:

    Antonio, muito lindo quando você escreve com razão e emoção! O texto é mais bem partilhado. O sentimento flui, se amplia, se derrama em lembranças, em símbolos, em fases, em muitas vidas…
    Bom ratificar que não precisamos de muitas metafísicas para expressar nossas existências, para compartilhar lembranças, repartir imagens, medos, satisfações, desassossegos, alegrias, sonhos, inquietudes…
    E, tudo isso, requer um aprendizado diário do olhar para perceber/compreender o ser e o viver humano de forma mais apurada. Solicita ainda, uma escuta atenta, cuidadosa, silenciosa, para reconhecer, com nitidez os “ruídos de dentro e de fora”, que não foram, não são e nem serão poucos.
    “As recordações se estendem, atravessam planícies e pulam abismos.” (…) “A síntese abstrai detalhes, porém não apaga emoções.” Perfeito!

    Celebrar em família, estar perto de quem se gosta, compartilhar a beleza de um musical, é, com certeza, motivo de encantamento,de avivamento das energias, de inteireza.
    Nos ajuda, nos encoraja a enfrentar com mais dignidade os “desacontecimentos”, os “impossíveis” da vida.
    Que o tempo continue, Antonio, a nos permitir “flutuar, sem exigir nenhuma medida” e “as lembranças se pendurem na vida e no ritmo”, sempre!!!
    Abjs
    Flávia

  • Flávia

    Seu comentário é emocionante. Ajuda-me a decifrações. Sinto que minha escrita fica mais cuidada e aberta, quando entra a emoção e o afeto. Isso é certo e você fez uma leitura que foi no coração.
    bjos
    antonio paulo

  • Gabriel disse:

    Pai, parabéns pelo texto e pelo blog.

    As tardes de domingo, realmente, minimizam a distância e ajudam o encantamento.

  • Bi

    Grato pela sua presença. É sempre afetiva.
    abs e bjs
    pai

  • Rosário disse:

    Professor,

    O encantamento sonoro permite a comunhão de gerações sem apagar as diferenças. O ritmo enleia, sacode e leva-nos ao encontro do vivido.
    A música mistura pedaços de nossas histórias e de nossas sensibilidades.È o ritmo da vida.

    Abraços

    Rosário

  • Rosário

    O ritmo é o tempo. Balança o ânimo e a tristeza, mas não dá para viver sem ele. A música ajuda a fertilizar outras imagens do mundo. Grato.
    abraços
    antonio paulo

  • Pablo Fotnes disse:

    No momento das lembranças, temos chance de interpreta-las com a perspectiva do presente. Análogo ao cantor que canta uma música de outro, guiado por seus sentimentos – formas de sentir a música. Lembranças ruins podem ser amenizadas, se processadas após reflexão.

    Ao lembrarmos de algo agradável sem interferência da reflexão, o revivemos e o imortalizamos. O conservamos intocável e, principalmente, sublime. Isso pode ser perigoso e fatalmente atrativo.

  • Pablo

    A memória nos acompanha e nos traz alegrias e dissabores. A vida não existiria sem os contrapontos. Temos que nos mover e evitar os prováveis escorregões.
    abs
    antonio paulo

  • Apesar de toda tensão vivida em sua adolescência, que de maneira alguma irei afirmar que gostaria de tê-las vivido, invejo o momento cultural dessa época, principalmente ao que se refere à música. Em um mundo em que figuras como Luan Santana, Restart e Justin Bieber são elevados ao nível de idosos, é realmente necessário olhar para trás e conhecer o que realmente deve ser tocado. Como eu queria que existissem novos talentos como foram Chico, Caetano, Jimi Hendrix, Janes Joplin… Mas a esperança ainda vive.

  • Ian

    Guardar as coisas do passado traz boas animações para o presente, sobretudo quando significam alegria e encontos.
    abs
    antonio paulo

 

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