Etorre Scola: cinema, história, sensibilidade

 

Ettore Scola é um diretor de filmes  instigantes. Italiano, segue a tradição de grande mestres, mas com uma autonomia construída com criatividade. Possui um compromisso com o social, mas sem deixar de lado as histórias pessoais, as intimidades, os sentimentos. Não foge do mundo da imaginação em nome de um realismo estreito. Sabe que a ideia de verdade é complexa e a política um campo de dissonâncias. Não se esconde do debate. Scola inventa metáforas, transgride, inquieta. Sua obra tem entrelaçamentos com Fellini, Antonioni, Visconti. Sua narrativa traz reflexão, encontro com a multiplicidade da vida, com os desconcertos do cotidiano. Um dia muito especial é um dos seus filmes mais conhecido e desafiador.

Quem se anima com a história aprende lições importantes. As andanças do tempo, as vacilações interiores, as contradições do contemporâneo ganham espaços que comovem o espectador. Scola se remete ao dia 6 de maio de 1938. Roma é o cenário do evento que uniu Hitler e Mussolini numa gigantesca manifestação de euforia imperialista. A  concepção autoritária empolga, se abastece de ilusões, desmancha a democracia. Os dois se proclamam redentores do povo, líderes exponenciais, sem tolerância para ao mais frágil adversário. A megalomania atinge o excesso do que não tem medida. Estimula violência.

A celebração move multidões, acende ódios, produz fantasias de futuros vitoriosos. Muita astúcia, perversão, concentração de poderes destruidores que assustaram o mundo da época. Scola desloca-se do que parece ser o alvo principal. Subverte a ordem comum das coisas e das relações. Sai da exaltação ao extraordinário. Dedica-se a observar a vida de outras pessoas.  Desponta, então, a atuação de Marcello Mastroianni e Sophia Loren, atores inesquecíveis. Arquiteta um contraponto: a comemoração ofical e as vidas, aparentemente, insignificantes de dois moradores de um prédio em Roma. Uma narrativa comovente, profunda que mostra um dia muito especial, não, apenas, para as farsas. A história se estende, compõe sinfonias inesperadas.

Sophia (Antonietta) é uma dona de casa, mãe de muitos filhos, sufocada pela opressão do machismo. Marcello (Gabrielle) não simpatiza com Mussolini, pouco liga para os fascínios fascistas. É homossexual, marginalizado pelos princípios da sociedade preconceituosa. Antonietta e Gabrielle vivem dramas, sonhos, covardias, medos. Por acaso, os dois se conhecem, num momento em que maioria delira com as manifestações e os discursos. Um momento de tensão e descoberta, de extrema sensibilidade, corta a monotonia e surpreende. Não se configura uma ruptura, porém há quebras e o fim de insônias. Ettore Scola nos toca, nos alerta sobre a dominação e as cores da subjetividade, sempre, ativas.

Não dá para navegar pelo oceano da história sem passar pelas ondas da ambiguidade. O filme é de 1977. A arte não é escrava das datas. Ela adormece e se refaz nas transcendências. Mergulha no coração aberto, sacode o sono da apatia, Não é primeira vez que assistiu a Um dia muito especial. Não cesso, contudo, de descobrir, refletir, conviver com a dimensão do humano que envolve o filme. Os caminhos da sensibilidade não são lineares, nem enfatizam ornamentos supérfluos. Nada como compreender a cultura como lugar da incompletude, mas também da superação e da magia.

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