Não pense, apenas, no sonho do paraíso(II)

A perigosa e famosa ideologia do progresso nos acenou com a ideia de um tempo que avança e pode trazer vantagens sociais profundas. Teve repercussões imensas. Mascarou muitos desmandos. Vestiu-se com as roupas da tecnologia para vender benefícios. Esqueceu as ambiguidades que compõem a sociabilidade. Criar um mundo de harmonias configuradas, radicalmente, é uma ilusão. Insistir na incompletude não é um vício teórico. O cotidiano nos mostra como possuímos lacunas e os desejos atiçam astúcias para não perdermos o ânimo. Portanto, conviver com as frustrações não é anomalia. A  história estica-se, olha o futuro, conversa com o passado. O fascínio do progresso assumiu o feitiço da industrialização e estimulou a expansão do capitalismo.

O tempo é o sucedido desgovernado, com afirma Guimarães Rosa. Hierarquizá-lo, sem reflexão, engana. Não há homogeneidade, apesar de toda burocracia da sociedade informatizada. Os calendários são históricos, pois respondem as questões de cada época. Sófocles ficaria perplexo morando num apartamento na Av. Copacabana. Nietzsche se inquietaria com 0 barulho intenso da Av. Paulista. A invenção do tempo exige conversas, não fica só nas artimanhas do eu. Não é estranhe que, no século XXI, existem pessoas que mergulhem nos comportamento do século XVIII. As curvas balançam o humano de forma constante.

É saudável imaginar o paraíso, desenhar utopias. Sem fantasia não se vive. No entanto, também é saudável saber os caminhos e suas sinalizações. Há distrações, porque não é possível se arrastar com a dor e amargas  decepções. Se não houver idas e vindas, a cultura não sobrevive. Daí, o risco de consagrar o progresso ou a euforia desenvolvimentista. O desgoverno está ligado aos limites, não é incomum. Ele se torna ameaçador quando apaga a ética e concentra privilégios. Mas ele também ensina, tem sua pedagogia, administra as vacilações do corpo e do sentimento, desde que , coletivamente, se busque superação e solidariedade.

O poder não é, apenas, esfera do público, do resultado das eleições, das manobras partidárias. O poder está em toda parte, até mesmo no território da afetividade. Basta observar as relações entre pai e filho, criança e adulto. Os sopros da dominação não cessam, nem tampouco o discurso do vencedor, cheio de arrogância e verdades ditas permanentes. Por isso, deixar-se levar pelos mandamentos do progresso, riscar a memória, firmar atualizações com se presente tivesse soberania merece amplas suspeitas. A história está não engessada, nem aponta para uma só direção. Ela é amiga das travessuras dos trapézios e das tristezas dos palhaços.

A luta política espalha-se pelo mundo. Não é única, não pede estratégias comuns. Move-se pelas cidades da Bolívia é muito diferente de move-se pelas cidades de Israel. Nem haveria, aqui, espaço para expressar as multiplicidades que nos cercam. Não conseguimos avistá-las de forma segura. Agimos, muitas vezes, por suposições. A objetividade seca é mesquinha, não se aproxima do anjo torto que acompanha o humano. Separar mentiras de verdades é pular abismos. O drama e a trama se entretecem, com sutilezas e sem linearidades. Quando legitimamos as exatidões e a quantidade, escondemos a incompletude.

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