O fetiche do moderno é contagiante

 

O estudo da história atrai, pois nos traz memórias e fantasias. Os tempos têm suas singularidades. No entanto, não se podem esquecer as semelhanças. No passado, lá estava Platão definindo bases filosóficas que não se findaram. Sua teoria permanece criando controvérsias e teve admiração, na Idade Média, de santo Agostinho. A simultaneidade não é  invenção tola. As relações se tocam, mesmo distantes. As teorias autoritárias de Hobbes não estão morrendo nos armários fechados. A violência continua marcando o mundo, com ações que lembram agressividades dos tempos remotos. É difícil lidar com as hierarquias. Elas são traiçoeiras.  O mundo se veste de muitos ornamentos, confunde quem o vê com discursos metodológicos lineares.

Há, porém, fascínios. A consolidação da modernidade, sempre, esteve ameaçada. Nem tudo, que os iluministas defendiam, firmou-se. A propriedade privada faz a festa, deixando de lado a igualdade e a liberdade. Palavras de ordem  fraternas ganharam o caminho dos museus que celebram as utopias e os encantamentos. Os contrapontos da modernidade não eliminaram o fetiche. O moderno seduz. Não é, apenas, uma construção intelectual e acadêmica. Muitos se dizem modernos. Pouco interessa a trajetória histórica das escolhas políticas. Os técnicos, nos esportes, exaltam as táticas modernas. É a compreensão do valor da técnica e da ciência, quase como uma religião. Os investimentos milionários correm soltos nas disputas olímpicas.

Quem se concebe conservador? Pode admitir a necessidade de certas regras do passado, mas quer adesão às ondas progressistas. Não se dá ao trabalho de fazer a tradução histórica da sua opção. Por detrás das odes ao moderno, existem relações que o sustentam, muito longe das ingenuidades e das crenças em anjos. O moderno dominante se entrelaça com os projetos capitalistas. Está envolvido com o fetiche da mercadoria, como aponta Marx nas análises feitas  na obra-prima, O Capital. O transformar o agir humano, sua criatividade, em vitrines cheias de objetos de compra e venda, merece atenção especial.

A sociedade de consumo não é o leito da neutralidade, nem a produção tem um conteúdo econômico, despido de interesses que tocam a sensibilidade. O artista, também, está no mercado, agoniado com a fragilidade da sua transcendência. Um olhar, no Renascimento, já revela que os negócios abalavam concepções estéticas. E quando se menciona as artimanhas das vanguardas e do pós-modernismo? As ironias de Duchamp (foto),as ambiguidades de Paul Auster, as alegorias de Kafka, as dissonâncias dos acordes de Glass como podem ser medidas e acolhidas no mundo do fetiche ? Não são tentativas de respostas ?

Portanto, estamos contaminados pelo moderno, com descuidos perigosos. É o culto ao rótulo e às impressões efêmeras. A reflexão cansa, porque se choca com as valores dominantes. Daí, a praticidade, a irritação com tudo que significa perda, sobretudo material. A sociedade não se move, muitas vezes, na busca de aprimorar seus diálogos afetivos, mas delira com as descobertas e os produtos, com mais a sofisticada tecnologia. O que salva são as desconfianças e as dúvidas. Os totalitarismos não são infalíveis e nem todos só desejam bombas e grifes luxuosas. Os fetiches se desmontam, os sonhos modernos se misturam.

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6 Comments »

 
  • Kbção disse:

    Caro Antônio, hoje o adjetivo “consevador” virou insulto. Com medo de toda a sorte de malentendidos que as definições costumam parir, ouso me definir como um conservador.Na Política, bom esclarecer! Liberalíssimo em relação aos costumes, desde cedo fui inoculado com vírus do ceticismo, levantando dúvidas e mais dúvidas sobre uma moderníssima vaidade humana: a crença de que nossa razão seria capaz de criar perfeições. “Existem tantos planos e esquemas, e tantas razões para não existirem planos e esquemas”, acertou na mosca Disraeli, em carta a Lady Bradford, definindo a natureza anti-teórica do consevardorismo. Como diria Oakeshot, mais do que uma dogmática, o conservadorismo seria uma disposição. Uma disposição burkena de reconhecer que o ser humano possui uma natureza que não pode ser negada pela confiança na capacidade de proceder à aplicação direta de um paradigma de perfeição teórico, alicerçado em doutrinas políticas abstratas. Essa soberba atitude descambou nos totalitarismos do século passado. Nada mais “moderno”. Com base nestas crenças, tudo deveria ser destruído, em nome de um novo mundo. Nada mais vão.Da trincheira conservadora, partem os mísseis em forma de sentença popperiana: feliz será a sociedade que se mostrar capaz de preservar as suas tradições úteis e benignas; porque serão essas mesmas tradições a apontar os caminhos possíveis para a resolução dos problemas mais imediatos.

    Abraço

    P.s.: Hoje, neurocientistas de várias especialidades costumam referendar o pensamento de Burke sobre o equívoco da teoria da tábula rasa e a existência de uma natureza humana. Vide Steven Pinker e outros.

  • Guilherme

    É um bom debate. Como educador ainda luto para formar e criticar. Por isso, mantenho sinais de esperanças e acho bom cultivar a incerteza. Mas complexidade é grande, porque o narcisismo não desiste de seduzir.
    abs
    antonio paulo

  • Gleidson Lins disse:

    Somos uma espécie inquieta. A novidade nos fascina. Perseguimos o novo com a curiosidade que nos é inerente. Rotular algo de moderno garante sucesso: compra-se, copia-se, admira-se tudo o que traz essa chacela. Chico Science foi feliz quando escreveu Samba Makossa: “Modernizar o passado é uma evolução musical. Cadê as notas que estavam aqui? Não preciso delas. Basta soar bem aos ouvidos…” Somos conservadores, mas queremos a modernidade. O que fazemos? Pegamos o que já existe, damos uma nova roupagem, rotulamos de moderno e… A fascinação está garantida!

  • Gleidson
    A inquietude faz parte das nossas travessias. Por isso, a criatividade e a vontade de voar.
    abs
    antonio paulo

  • Murilo disse:

    No passado era muito mais fácil distinguir opressor de oprimido. Hoje, por mais que saibamos de onde partem as agressões ao mundo, a instrumentalização da realidade por parte dos reis modernos, confunde e limita nosso poder de atuação. Os hipnotizantes artigos de entretenimento, providos pelo avanço tecnológico, ajudam a manter a massa contida. Os encantamentos modernos suprem a falta de… do que mesmo?

  • Murilo

    Há muitas formas de manupilação e isso nos confunde.
    abs
    antonio paulo

 

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