O poder, a política, o espetáculo, o privilégio

Estamos muito longe de pensar o poder como algo restrito aos domínios dos governantes. Já se foi o tempo de monarcas absolutos, embora as teorias sobre o autoritarismo mereçam leituras. É que as relações sociais mudaram, depois da chegada da modernidade, com o fluir das chamadas revoluções burguesas. Não poderia ser diferente. A industrialização trouxe mercadorias para um consumo que se expande. A nobreza sentiu cair seus alicerces de privilégios especiais. Houve certas permanências, os mascaramentos não perdem lugares, mas as sociedades acompanham as tradições desmoronarem e os sentimentos pedirem socorros. A eficiência econômica seduziu, concentrou capital, consagrou a competição.

Há o poder centralizado e centralizador. Ninguém nega a ação dos governos, as tramas, os partidos, os jogos políticos. Muitas coisas se fragilizaram. A ciência transformou saberes, arquitetou hierarquias incomuns que abalaram crenças seculares. A razão conquistou vitrines, multiplicou ilusões. O progresso tornou-se o canto solene dos otimistas. O poder reconfigurou relações, movimentou-se, exibiu outras estratégias. Há concepções de mundo que conseguem convencer a maioria. Elas ajudam a propagação de hábitos e asseguram conservadorismos significativos na gestão social. As idas e vindas da história não se fazem sem discordâncias. A  segurança é sempre relativa e nem os totalitarismos firmaram-se como pretendiam.

Insistir no casamento do poder com a política não é alucinação. É preciso ampliar o conceito de política, não escolher, apenas, os grandes fatos e as celebrações presidencialistas. O poder está em toda parte. A complexidade do nosso tempo costura mantos de ordem e disciplina das mais variadas cores. Se há a prevalência de leis é importante que elas atuem no cotidiano. Até nas relações sentimentais existem choques e resistências. A velha polêmica sobre o machismo, a abertura para convivências com outras sexualidades, as preferência musicais, as obras invasoras da especulação imobiliária, tudo isso nos revela que as relações políticas não possuem datas marcadas.

Observem a sociedade do espetáculo. Por ela circulam milhões de pessoas e de interesses. Um show mobiliza instâncias do poder público. Os bastidores fervem, as manipulações escondem negócios nada democráticos. Se a sociedade se reveste de desigualdades, não há quem consiga fugir das suas armadilhas. Quem controla a política não quer ceder seu território. Portanto, os investimentos não se resumem aos tempos eleitorais. A atenção é constante e a arte é um caminho para mostrar envolvimento e fortalecer discursos. O Congresso Nacional treme com as desavenças, como tremem, também, os concursos literários, a Copa do Mundo, as exibições de sucesso do cinema internacional. Busca-se o êxito com o sopro do poder.

As travessias políticas atravessam o mapa  da sociedade  aumentando mandamentos. Contam com a participação dos meios de comunicação, com esquemas de propaganda articulados. Não há como estimular neutralidades. Os compromissos são firmados e as simulações atrapalham a compreensão de quem, efetivamente, lucrará. Os cofres se fecham, as atrações se renovam. Há indivíduos que se perturbam se não vencerem a batalha da compra dos ingressos. Desejam assistir às programações dos astros. Sentem-se marginalizadas, deixam de frequentar as colunas sociais e os grupos de opinião, caso sejam excluídos. O fascínio do poder enfeitiça e coisifica.

You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.

4 Comments »

 
  • Antônio Dantas disse:

    O poder está em toda parte e erra quem o limita apenas à esfera política.
    Está na vida em sociedade, nos desafios diários, na concorrência desenfreada e na constante busca pelos bens e serviços… A “sociedade do consumo” nos consome e cria cada vez mais necessidades desnecessárias.

    Parabéns por mais um excelente texto, Rezende.
    Abraços!

    Antônio Dantas.

  • Antônio

    Grato pelo estímulo. O poder se espalha e invade. Não adianta vê-lo, apenas, na centralidade.
    abs
    antonio paulo

  • Natascha Brayner disse:

    O poder hipnotiza, nos leva a um transe, um estado de semi-consciência – cega! Sem dúvida a relação com o poder sofreu grandes rupturas na modernidade, mas as continuidades gritam. As desigualdades sociais perpetuam velhos privilégios e quem tenta nadar contra a corrente precisa lutar com todas as forças para não se afogar, não sucumbir. Pensar incomoda o poder, a reflexão incomoda o poder – representa perigo. É preciso neutralizar as mentes pensantes e, nesse momento, o discurso da desqualificação, fazendo renascer velhos preconceitos, faz um papel fundamental. RESISTIR RESISTIR RESISTIR
    Parabéns pelo texto Antônio. Brilhante como sempre! Forte abraço

  • Natascha

    Bom vê-la por aqui. A saída é mesmo criar alternativas e evitar feitiços. Saber que há ilusões que atrapalham e desfazem as resistências.
    abs
    antonio

 

Deixe uma resposta

XHTML: You can use these tags: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>