O sertão não se cansa de anunciar o desgoverno

A história tem sua multiplicidade. Ninguém nega. Uma história de uma só cor seria uma monotonia sem fim. Mas não se pode resumi-la  às mudanças e fazer do tempo um fluir de invenções constantes. Temos muitas relações em jogo. Somos animais sofisticados. As necessidades existem desde a fundação dos primeiros paraísos que as fantasias alimentam. Na sociedade atual, fica difícil entender o valor das urgências e os artifícios das vitrines. Vivemos interpretando os momentos, incorporando hábitos, observando as diferenças e os encontros. Temos coisas em comum, não moramos nos mesmos lugares, atravessamos trilhas escorregadias, porém não deixamos de narrar as aventuras. Buscamos sentidos e muitos querem festejar identidades fixas, com orgulho desmedido.

Conversa solta, para pensar nas permanências históricas. Contemplamos paisagens, contudo agimos, não admitimos sossegos frequentes. Por isso, a ideia das metamorfoses, o delírio da revolução, a exaltação do progresso. Perdemos de vista as repetições. Elas não representam, apenas, acomodações. Exigem olhares atentos para compreendê-las. Trazem, também, aprendizagens, além de desperdícios e vazios. Tudo isso, para ressaltar que,no ritmo de sempre, se tomam medidas para combater a seca no sertão. Quantas vezes iremos conviver com essa notícia, quantas vezes o desgoverno maltrata e desencanta? Basta apenas perguntar e testemunhar a apatia?

Recorro a Mia Couto: As ciências sempre foram policiadas e manipuladas pelos poderes. Hoje não vivemos numa situação de exceção. Esses poderes não têm um rosto definido. Um deles chama-se mercado. Cabe-nos a nós interrogarmo-nos se não nos estamos convertendo em funcionários desses gigantescos laboratórios sem nomes. Essa sua bela reflexão mostra as dificuldades que nos cercam e envolvem o mundo do capitalismo, com suas desigualdades. Mia preocupa-se, sobretudo, com a África. Lá, as lamentações são imensas, e os colonizadores firmaram uma crueldade incomum. Os vestígios da violência impedem práticas democráticas e sinais consistentes de modernização. Compartilhamos agonias de misérias que se mantêm.

As máscaras voltam. Não dá para esquecer que a seca é secular. Há questões de clima, de vegetação, porém a falta de cuidado administrativo é um contínuo. Tanta euforia com o desenvolvimento, com a venda de carros e celulares e a fome registrando vítimas, a escassez d’água impondo limites. As cidades se ressentem de mobilidade, desejam ganhar velocidade para celebrar seus cultos ao calendário das compras. O sertão desesperado em busca de fôlego, esperando ajuda, orando, dependendo dos interesses políticos. Quem lucra, quem é solidário, quem consegue efetivar o diálogo com a técnica e superar os desconfortos?

As histórias correm soltas com suas lendas e seus mitos. A simultaneidade nos coloca diante de culturas complexas, convivências com paradoxos, mas o sentimento de culpa não se foi. A seca lembra, para muitos, as audácias do pecado original. A leitura do dor se apaga, pois é preciso perdão. As peripécias do poder não possuem uma nudez que desfaça certas ingenuidades. O mundo não se esgota nas suas idas e vindas, nem tampouco as colonizações são memórias corroídas. Os tempos se confundem e provocam desmantelos. A ambiguidade das relações sociais costuma, sem pausa, se estenderem pela história.

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