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A Páscoa das vibrações ansiosas e sedutoras

       

A religião toma seu assento, trazendo lembranças e reverenciando suas crenças. É uma época festiva, para alguns, e de meditação, para outros. Vida e morte se colocam, a vontade divina ganha destaque e a salvação dos pecados redefine escolhas. As cerimônias são acompanhadas por reações diversas. Há quem curta o momento de um bom vinho, uma mesa farta ou chocolates de sabores indiscutíveis. Quem cultiva sua fé lança olhares diferentes e aprofunda seus compromissos. É o mundo contemporâneo, moradia da diversidade, território de dualismos e de inquietudes flutuantes.

Recordo-me da infância. Era proibida qualquer brincadeira na sexta-feira. O silêncio era preservado e as comidas possuíam cardápios especiais. Não havia esse deslumbramento com o comércio e a promoção de shows artísticos. Há, agora, uma mistura que incomoda os mais discretos. Não se pode, contudo, negar que maioria aposta no divertimento, na folga dos afazeres e passeios pelo shopping center. Dispensam sacrifícios e culpas. Deliciam-se com a oportunidade de expressar alegrias  incomuns, fora da dureza do trabalho. Portanto, nada de uniformidades. Viaja-se, celebra-se, promove-se mais um feriado, de grande popularidade.

Por coincidência dos calendários, o futebol também se assanha. As disputas regionais entram na fase final. Os clubes  fantasiam seus cenários de lucros ou de decepções amargas. As torcidas gostam de atiçar as rivalidades. O Náutico luta para que o Sport não chegue ao hexa, mas o Santa Cruz procura renovar suas esperanças. O Flamengo  alimenta a mídia com as aventuras de Ronaldinho e Grêmio com as declarações polêmicas de Renato. O São Paulo e o Corinthians parecem não se entenderem em nada. Os mineiros comemoram os feitos do Cruzeiro na Libertadores. Enfim, no domingo começa a corrida para decidir o título de campeão. As multidões estarão nas ruas, com  bandeiras e gritos, mesmo em plena Semana Santa.

A velocidade é, sempre, afirmada como gestora das transformações nas práticas sociais. Ela não surge do nada. O mercado exige o consumo dos produtos. As indústrias se preparam e os magazines estocam suas surpresas. São meses de planejamentos. A Páscoa se articula com o próximo dia das mães. Amplia-se a oferta de emprego e a televisão intermedia a agitação dos desejos. O turismo desfruta de boas faturas. Leiloam-se as vagas nos hotéis e pousadas. No mundo contemporâneo, as vitrines prosseguem soberanas. Estão nos becos estreitos, nas barracas ou nas redes de eletrodomésticos mais insinuantes. Não é o exagero que preocupa as pessoas, mas a impossibilidade de não se mergulhar na sedução.

Quem seria capaz de fixar os limites e abandonar os discursos de exaltação?Cada cultura com as suas memórias , seus encantos, suas tradições. Entre as permanências e as metamorfoses, ela arquiteta os cotidianos. Eles se tocam, muitas vezes, porém podem trazer conflitos. Ela se vale das relações sociais e do poder hegemônico dos seus senhores, para fortalecer promessas. Há guerras e jogos que movem corações apaixonados. Há tensões e festivais de rock, entusiasmos com a música sertaneja e concentração para ouvir os acordes das sinfônicas. A cultura é o caminho da história. Nela, cabem o sagrado e o profano. As máquinas ajudam no desfile das vaidades.

O paraíso mora na cadeira de balanço

Gosto de observar as coisas. Ganho horas, contemplando objetos e imaginando situações. É uma meditação, sem regras ou anseios religiosos. Um estar-no-mundo, sem metafísicas, mas com a empatia estimulando o pulsar da vida. Não bastam ruídos, para as transformações ocorrerem e os sentimentos movimentarem-se. Há interioridades que fervem e objetividades frias. Escravizar-se, com as determinações comuns, é perder o contato com as ousadias. O acaso não está nos riscos do  real, nem só se ativa nas ficções de Paul Auster. Se existisse uma única cartografia, a história morreria com Adão e Eva e Narciso cultivaria os rancores da solidão. Não há pior servidão que a esperança de ser feliz (Carlos Fuentes). Talvez, a esperança mova-se na sinuosidade e nem haja tempo, para se olhar nos espelhos.

 Como então se reconhecer? Observando as coisas, criam-se relações. Não pense que a história se registra, apenas, nos documentos ou nas narrativas confirmadas pelas pesquisas. Jeanne Marie Gagnebin ressalta que os poetas e adivinhos, ambos cegos, vêem o invisível, o passado e o futuro que os outros homens clarividentes não exergam. Por que desfazer as possibilidades dos mistérios e esconder a força dos mitos? É a multiplicidade que espalha os significados das culturas e nem todas aparecem com seus desenhos exteriores. Envolvendo-me com as coisas atravesso outros territórios da sensibilidade. O  olhar cuidadoso traz a vida. Não com seus traços biológicos e marcas da natureza, porém nos suspiros da fantasia.

A vida é animação, requer um enredo, um começo, uma construção. Tudo isso me incomoda. Tocar nas origens é rever limites. As coisas foram fabricadas. Posso visualizar sujeitos, ações, trabalhos, finalidades. Elas estão diante de mim, acompanham o balançar da minha cadeira e consolidam um alfabeto que desconheço. O ser humano inventou travessias, porém sacudiu fora  os primeiros mapas. No entanto, diz Nietzsche que foi o homem que deu às coisas o seu valor, com o fim de se colocar em segurança; foi ele que lhes deu um sentido humano. Por isso é chamado o homem-o que mede as coisas. Cá estou fugindo da simplicidade que me acolhe. No armário existem gavetas que guardam segredos e moedas. Quantas histórias podem ser articuladas na escuridão da sua madeira?

Em cima da mesa, há livros, nunca consultados, ornamentando as vontades intelectuais. Seus autores, solitários, pedem testemunhas da sua utilidade. O cerco das coisas exige extensas divagações. Instiga a memória, já encurralada por tantas lembranças. E as paredes que escutaram tantas promessas e desamores angustiantes? E o vermelho das cadeiras, as listas pequenas das almofadas, as pequenas bonecas de barro cheias de cores e de artes? A cadeira de balanço me faz sentir no paraíso. No seu vaivém, deixo escapar o desejo da não censura. Experimento o sabor das transgressões na mistura das dores com as paixões. Crio relações de cumplicidades com a música que está tocando e com o perfume do incenso que inunda cada canto da casa. As coisas estão juntas, aguardando delírios passageiros e a configuração do pertencimento de cada um. Contemple-as, sem descuidos.

A poética do encontro, a dança da invenção

Pensar a poética dos encontros nos convida a envolver-se com as invenções. Olhar tudo, como determinado, deixa um cansaço. Mesmo que não saibamos a exatidão do caminho, é importante não afirmar a sobrevivência de um desmantelo total. A ameaça das incertezas faz parte da dança da vida. Procuramos garantias, iluminanos o cais das embarcações mágicas, mas a travessia  tem um desenho descontrolado. Há relâmpagos que parecem ter de fato ideias… Permitem compreender,- daqui, até ali… E no entanto me deixam incerto. Incerto não é bem a palavra… Quando a coisa está para vir, sinto em mim algo de confuso e difuso(Valéry).

Mergulhemos nas metáforas do poeta. É como escutar o bater de asas de um beija-flor. A sensibilidade flui. Abraça-se com a beleza. Ela é a verdade, sem pretensões de objetividades eternas ou fundamentos absolutos. O que fica na invenção é poder de surpreender-se. O inesperado sacode agonias e brinca com dúvidas. No entanto, não está divorciado da dimensão estética. A confusão é, também, um encontro. Sua geometria dialoga com os retornos, porém arquiteta as possibilidades do futuro. Nada se esgota. Na incompletude humana, o espaço da criação tem continuidades e ousadias, completadas pelas amarguras e frustrações.

O encontro não está marcado no calendário numérico. É cenário de comédias e de tragédias. Não dá para nomeá-lo com antecedência. O sentido vem depois da sutileza das narrativas. As palavras se juntam para esclarecer. É uma pretensão poética, sem linhas cartesianas. Dançam um tango de Piazzolla. Quem se move, não se aborrece. Vai adiante, sem muitas perguntas, apenas com coração abrindo todas as portas e contemplando, de longe, as borboletas vermelhas voando sobre os jardins da imaginação. Portanto, é o território da arte que se expande, aconchegando o sonho que estava solto.

Explicar cada ato humano é uma simulação. Aprisionar a linguagem para que ela coincida, com o real, é  desconhecer a multiplicidade. Não existe um real definido, largado na história. Sua formação aponta relações de poder, descreve governos, muitas vezes, opressivos. Não é estranho perceber nos traços da ficção o descortinar do futuro e o desbotar dos passados. Os tempos não se calam. Mostram-se silenciosos, para validar disfarces e esconder desencontros. As palavras não possuem significados terminados. O que se apresenta como ordem, no século VI, talvez seja uma desordem, sem igual, em 1963. Por isso, ambiguidade visita a poética do encontro. Sua fantasia não impede sua história,  deslocamentos constantes.

A soltura luta contra os fechamentos, de forma ardilosa. Suas armaduras lembram penas de pássaros gigantescos, mas não desejar se resumir ao peso ou à força. Prefere a astúcia. Borda os gestos, com cores efêmeras, para enganar quem costuma aprisionar os voos. A poética exige pés fora do chão, mãos vadias, olhos serenos, contaminados pelas estrelas. Não se fixam e viajam nas ternuras das melodias de Ravi Shankar. Quem se atormenta, com a leveza, está com as raízes atrofiadas pelo pecado original. Se a invenção se demancha, a poética se afunda. O afeto se perde na mordida da maçã.

O cerco do espetáculo e das informações passageiras

O ano está sendo pontuado de tragédias. A violência acompanha os atos humanos, em lugares antes considerados de sossego e divertimento. Parece que foi escrito um roteiro, com cuidado e paciência, e nós o cumprimos sem se dar conta da gravidade. Os sofrimentos respondem com protestos, as raivas são colocadas em microfones e imagens. No foco dos acontecimentos, as promessas políticas tomam providências urgentes. Não há, porém, garantia de continuidades. O esquecimento ganha espaço e a as perdas atingem os mais próximos. As notícias diminuem seus impasctos e a substituição é feita. Outros atores, outras ficções, outras lamúrias. O importante é que o espetáculo mantenha seu poder de emocionar. Ele desloca-se, com grandes ruídos.

É impressionante , como o sucedido, no Japão, vem se tornando uma lembrança confusa. Permanece a impressão do susto dos primeiros momentos, mas sem aquela imensa dose de desconforto. Poderia ser um filme, uma preparação organizada nos estúdios cinematográficos sobre tragédias  naturais. Os artifícios criam imagens fabricadas. A discussão sobre o real e o imaginário agita os meios acadêmicos, no entanto seus desacertos estão na vida cotidiana. Os controladores da sociedade do espetáculo não se envolvem, em debates, sobre  a verdade. Eles buscam manipular as sensibilidades ou mesmo produzir um comportamento social que atraía pessoas. O trabalho ardiloso, de fixar preços e entender que tudo é uma mercadoria, monta estratégias de convencimento.

A  velocidade das mudanças tumultua nossas relações com o tempo. Há um envelhecimento precoce das coisas e das relações. As informações circulam e se desgastam em minutos. O que era uma novidade excepcional se desfaz, de um dia para o outro. O mundo é do descartável. Vale a informação, sem o aprofundamento das interrogações mais fundamentais. O grande desafio é conquistar o público, sem passar da superfície. O cansaço do corre-corre exige repouso. Conectam-se as intenções e os pactos estabelecem-se no silêncio da fantasia. A mídia, no geral, não desperdiça sua capacidade de persuasão e enlaça os desejos com maestria. Vejam as novelas de sucesso ou as propagandas que insistem no humor e na construção das diferenças sociais.

A radioatividade causa danos irreparáveis. No Japão, o acidentes nas usinas deixou transtornos que demoram se desmontar. As análises não esclareceram muita coisa, apenas alguns países resolveram rever seus programas com energia atômica. Há pessoas, na região do acidente, tentanto impedir os efeitos fatais, sofrendo perigos e, praticamente, condenando suas saúdes. A banalização da morte não se afasta da história. Sofistica-se. Os genocídios não são raros. Elucidá-los é traumatizante. 

A história tem, também , lixos e acumulações.  Existe quem os selecione e trame sentidos para degradação das relações sociais. O espetáculo do circo de subúrbio é frágil. Qual o seu poder de sedução diante da internacionalização das disputas e das imagens coloridas, pensadas para multiplicar milhões? Ninguém expõe as desigualdades, esperando que elas promovam rebeldias. Não há como negá-las. Reforçam o acúmulo de informações, estimulam discursos de raiva e fazem o contraponto com as conquistas celebradas nos núcleos de poder. As ambiguidades humanas possuem seus lugares de culto. Não podem fechá-los. A vida continua.

Reinventam a história política do povo brasileiro?

  

As polêmicas retomam o foco do noticiário, com a falta de objetividade de sempre. Fernando Henrique Cardoso abriu mais um debate, para fazer especulações e ditar conselhos. Não faltam interlocutores. Transforma-se pó em pedras preciosas. Há quem fique calado, curtindo os devaneios dos outros. A clareza dos argumentos é sinuosa. Cabem interpretações de amigos e adversários. FCH  foi presidente da República. Merece, portanto, congratulações dos  próximos ou daqueles que não perdem a chance de aparecer na vitrine. A análises se formatam, as louvações se espalham e a controvérsias se acendem. Movimentam-se vozes, mas as dificuldades básicas prosseguem marcando a maior parte da população.

A  figura do sociólogo traz lembranças destacadas dos tempos de governo. Lançou o Plano Real, conhecido por deletar a inflação e promover estabilidades na economia. Seus feitos e argumentos são usados para diminuir o festejado sucesso de Lula. As euforias se dividem. Cada um sacode sua bandeira, cria explicações e defende suas opções políticas. Toca-se um samba de uma nota só. Há um costume antigo de  forjar-se descontinuidades e não salientar os diálogos possíveis entre as administrações. Todos perdem, porque as falácias ganham espaços. Evita-se, assim, aprofundar as soluções e joga-se na força  do fascínio dos votos.

Parece que o grande patrimônio da política é poder  nomear e distribuir cargos. É o que prevalece, mesmo com desacordos e denúncias de muitos. Conceituar povo não é reflexão recente. Há memórias de embates seculares, anteriores a Vargas, o mágico do populismo. Os critérios firmam-se historicamente. Não são permanentes. Quem era o povo nos finais do século XVIII na França ? Quem é povo, no mundo árabe, atravessado pelas disputas do século XXI? No Brasil, dos tempos da escravidão, houve desigualdades consistentes, mantidas por preconceitos e concentração de riqueza. Poderia se falar de povo nas circunstâncias coloniais, contaminadas por explorações avassaladoras?

A história não se acomoda, porém está envolvida por vestígios autoritários, aparentemente, anacrônicos. Não visualizar a importância política do povo tem significado. Ele não é quantidade de pessoas manipuláveis, sem desejos e espectadores dos senhores poderosos. As filas dos postos de saúde se arrastam, as escolas se ressentem de pedagogias atuantes, nas reformas sociais, as cidades crescem no ritmo da violência e ameaçadas por descontroles nos míminos detalhes. O prejuízo é sinal de que o discurso passa longe das necessidades urgentes. Os deveres das administrações públicas se atrofiam cotidianamente. Os jornais estampam, sobretudo, disputas pessoais, procurando, como cartomantes, decifrá-las.

Tivemos imperadores, ditaduras massacrantes, elogios salientes à modernização, greves urbanas e movimentos rurais que inquietaram as ordens existentes.Não basta, apenas, identificar teoricamente os sujeitos, para organizar planos de ação. As necessidades da maioria são visíveis, escondê-las, em papéis, é um vazio. Inventar abstrações fortalece desconfianças. Por que não se socializam os desconfortos? A questão básica é a conquista do voto, traçar estratégias em cima do poder de consumo? Chico Buarque canta música que afirma que a dor d’ a gente não sai nos jornais. A dor se transfere, apenas, para o mundo como espetáculo ou se projeta nas figuras mal desenhadas da linguagem? A reinvenção é uma estratégia ou uma vaidade?

A travessia da solidão e o meio do mundo

Quando os silêncios se tornam plenos, os recolhimentos anunciam a subjetividade em celebração. É hora de contar as palavras, acionar a magia de falar com o mundo, apenas com os ruídos dos sussurros. Não é uma desistência de rebeldias. O silêncio não é renúncia, mas transformação que lembra os personagens mais enigmáticas de Macondo, de García Márquez. Esconde-se para se escutar, sem assombrações, traduzindo as cores e ouvindo a música repetida com monotonia. Dá-se o encontro, então, com a possibilidade maior: saber que a solidão é uma forma de abertura para o outro, com o cuidado do olhar mínimo.

A solidão pode significar, em muitas ocasiões,também,o império da dor e da perda. Surge o inconsolável, o que não tem explicação. Firma-se  o desejo de  onipotência  delirante. É tempo de fuga, de lidar com o insuportável, com o absurdo, com as geometrias complexas do artista holandês M. Escher(acima). A sociedade parece viver, então, sob uma neblina definitiva. Diminui a luminosidade e a cegueira não é mesma dos primeiros poetas fundadores do mundo. Arrasta-se o passado, na sua memória mais pesada. A desilusão costura o futuro e adormece as tentativas das ousadias criativas.

Assim, os sentimentos tocam seus ritmos, porque a vida não é solta e tem amarras. Nós é que queremos defini-la. Se inventamos as palavras para nomear as coisas que contemplamos, também convivemos com desenhos mudos e páginas de brancura exemplar. O vazio absoluto nunca se concretiza. O risco desalinhado substitui a arquitetura sofisticada, o abandono, a paixão mais dilacerante. Piscar de olhos, pensamento humano, asa de anjo: que seria bastante veloz para interpor-se entre a pergunta e a resposta, separando uma da outras? ( Thomas De Quincey). A quem pertence os enigmas que se voam sobre a história desde as desobediências de Prometeu?

A relatividade nos acompanha, porém não impede a transcendência. A vida não se  faz sem deslocamento. O  jogo do esquecimento acorda as lembranças, sem que haja precisão de momentos, nem horas marcadas pela fatalidade. Há uma gratuidade que desafia e surpreende. Ela é que nos traz a ansiedade de descrever destinos. Com certezas, o mundo seria repleto de travessias sinalizadas. Com dúvidas, o mundo não tem uma geografia uniforme, assanha vulcões e cava abismos. As linguagens são inundadas por adjetivos, numa busca de compreender a agonia das formas e suas qualidades. Visualizam-se fundamentos, onde correm fantasias armadas de brincadeiras efêmeras. Por isso, os dogmas retorname sossegam corações inquietos.

A sociabilidades diverte e converte. As vestes protegem e desnudam. Entre a partida e a volta, a história se compõe e introduz as narrativas das experiências. Quem leu a Metamorfose, de Kafka, não deve ter ficado impassível. O sofrimento humano é vago. Move solidariedades distantes e indiferenças cobertas pelo mesmo lençol. Por isso, diz Italo Calvino, o justo emprego da linguagem é, para mim, aquele que permite o aproximar-se das coisas (presentes ou ausentes), com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas (presentes ou ausente) comunicam sem recurso da palavra. É uma medida, uma magia ou um estar-mundo, fluindo o seu instável  sentido?

O pragmatismo na intensa roda-viva da política

Hannah Arendt ficou assustada com os horrores do totalitarismo. Fez das suas reflexões uma forma de luta. Deixou uma obra valiosa que mora no mundo e ajuda a decifrar presentes e passados. A violência inibiu tradições, derrubou solidariedades, desconectou pactos. Lançou as conquistas democráticas numa agonia sem igual. Nos desamparos trazidos pelo autoritarismo, Hannah observou a solidão e a amargura. Toda modernidade foi sacudida pela tentativa de anular culturas e celebrar genocídios. Seus textos, sobre a brutalidade dessa experiência, tocam nas perguntas que Walter Benjamin, seu amigo, colocou sobre a construção e sentido das narrativas.

A ética se perdia, para que o militarismo avançasse e o utilitarismo se fortalecesse. Tudo isso não se desmontou, ainda, de vez. O fascismo sobrevive, em muitas práticas, com outros disfarces, sem o gigantismo dos tempos de Hitler e Mussolini. Não foi obra solitária. Contou com manifestações de maiorias tentando se curarem de ressentimentos e estimularem agressividades. A pulsão de morte, tão discutida por Freud, mostrava a força destruidora da vingança e da arrogância etnocêntrica. Mais uma vez, cabe afirmar que o mal-estar na cultura se multiplica e estreita otimismos. As ordens se articularam, sob o signo da anulação do outro, enquanto o fascínio com o progresso era consagrado por muitos.

As contradições não são estranhas à história, nem lhe dão uma singularidade que só existe na contemporaneidade. O mundo, pós revoluções burguesas, ganhou desenhos e labirintos bem diferentes das igrejas e orações medievais. Estamos nos referindo ao Ocidente. As colonizações se apresentaram sem generosidades. O comércio se ampliava, com as compras e vendas de escravos. Assim, a burguesia se criou e alimentou seus projetos de dominação. Não faltaram pensadores para justificar suas aventuras. Lembrem-se de Maquiaval, Hobbes, Montesquieu, Adam Smith e tantos outros. Não se trata de organizar-se, aqui, um tribunal de julgamentos, porém de observar que as ideias se estendem e agitam instantes, aparentemente, desiguais. Não nos esqueçamos das semelhanças.

A burguesia tinha e tem seus adversários. Não vacilou em combatê-los e, ao mesmo tempo, propagar seus sentimentos de desprezo a tradicões e prometer rupturas. Nos primeiros momentos, as revoluções trouxeram reformas e redefiniram  relações de poder. As utopias exigiam mais radicalismos, mas o jogo era difícil. Liberdade e igualdade receberam cuidados especiais. Havia entusiasmos e decepções, fábricas e trabalhadores assalariados, cidades sufocantes e máquinas produzindo. A sociedade incentivava a  acumulação de riquezas, sob o reino da razão e da ciência. E a famosa secularização da cultura, analisada por Hannah, em vários textos, tomava conta do social e do político.

As descontinuidades se firmaram. Os espelhos tinham imagens de cores, no começo indefinidas. Palavras de ordem inscreveram-se em mentes e  corações. Estamos, no século XXI, encontrando-se, agora, com o que  foi vivido. O capitalismo defrontou-se com crises. Espalhou-se pelo mundo. Não é, apenas, charme, também devasta. O pragmatismo não desanimou. Invadiu outros territórios das relações humanas. Sua sagacidade impressiona. Kadafi já foi festejado, considerado político importante, amigo estratégico. Hoje, está na corda bamba. Veste-se da figura de demônio. O dualismo não está sepultado. No mundo das mercadorias, a valor de troca dita suas leis, engana a fraternidade e os rebeldes.

A arma, o inesperado, o afeto, a violência

 

Arma é uma palavra pesada. Armar, armadura, armadilha, armação. A arma mata, ataca, ameaça, defende. Possui significados que mudam, rapidamente, com os vaivens dos códigos de comportamento. Quando a utilizamos nas metáforas, ela não perde sua densidade. Atinge o campo da moral. Deixa suspeitas. Alguns têm coleções de armas, outros ornamentam sua residência com peças utilizadas em guerras do passado. Ela abastece rebeldias, ajuda nos assaltos a bancos, assegura poderes autoritários. Torna, muitas vezes, a violência uma banalidade cruel. A bomba atômica é uma arma, uma faca de cozinha, também. Variedades de usos impressionam e se apresentam assinalando a marca de cada época.

Sua manipulação presta-se ao inesperado. No Rio de Janeiro, o recente assassinato de  crianças desfez cotidianos e multiplicou angústias. Foi tenebroso. A cidade assombrou-se, os discursos contra a violência se reforçaram, a solidariedade trouxe pronunciamentos de todo mundo. A presidente Dilma conversou com Bono , do U2 e lamentaram, juntos, o descontrole que atravessa a sociedade. O conjunto irlandês comoveu seu público, lembrando o episódio. Fez um registro dos fatos no seu show, em São Paulo. A memória forma-se com amarguras e com afetos. Nada é para sempre, com os mesmos tons e cores.

Toda tragédia cria seu enredo. Busca-se compreendê-la. Os sofrimentos arquitetam suas narrativas. Há perplexidades. Por que aquela maneira de morrer? Por que a loucura se mistura com a ausência de afetividade ? A tragédia não é incomum, mas não foge dos inconformismos gerais. Surgem heróis, relatos, testemunhas, críticas, desesperos. Crianças  morreram , numa escola, espaço da pedagogia de vida.  Limites foram transpostos. O atirador estava tomado por obsessões e as extravasava  na internet. Sua casa foi pichada e seus parentes sentem medo. O círculo se fecha. Por onde  andam  a punição e a ética das reflexões coletivas? A repressão é a resposta ou o estímulo?

Nessas circunstâncias, a fatalidade se reinventa. Muitas crianças não querem voltar para o convívio dos seus colegas. O trauma renega a esperança e destroça o sonho. O lugar, que era sagrado, torna-se símbolo de maldição. O ritual da cultura se repete diante da dor e da finitude. Sobram incertezas. O governo mobilizou um aparato enorme para amenizar as consequências. No entanto, os ressentimentos se conectam com o desamparo. A interpretação de cada um termina prevalecendo. Há confusão nas imagens, desencontros nas emoções, vontade de que aquilo fosse uma grande mentira. Por que a agressividade, os preconceitos, a gratuidade, o vazio? Não se trata, apenas, de uma tristeza configurada pela incompletude. A materialidade da morte não é um delírio. Muitos se foram, não adianta imaginá-los com os sorrisos de antes.

As culturas, nunca, garantiram estabilidades. Há ritmos, desarmonias mais profundas, instantes de sossego. Com a complexidade do mundo contemporâneo, as culturas atiçam inquietudes e fragilidades, apesar das fabricações da mídia e das tecnologias celebradas, como redentoras dos desconfortos. A sociedade cultiva perdões e culpas. Espelhos, melancolias, barbáries. A violência tem armas e espanta projetos de recuperar sociabilidades otimistas. As armadilhas sofisticam-se no ir e vir das competições. Não escolhem lugares e arrastam a história para precipícios.

O instável (des)encantamento do mundo

Muito se fala do desencantamento do mundo. Tema presente nos esconderijos acadêmicos e nas polêmicas sobre a modernidade. O que levaria a tantas dúvidas e desconsolos? Este mundo que oferece o banquete a todos e fecha a porta no nariz de tantos,  é ao mesmo tempo igualador e desigual: igualador nas ideias e nos costumes que impõe e desigual nas oportunidades que proporciona( Eduardo Galeano). As ambiguidades, multiplicadas pelas promessas revolucionárias, é uma pista. A falência dos entusiasmos com o progresso, a melancolia trazida pelo desamparo afetivo e cinismo fecundo dos discursos políticos mostram a complexidade de isolar-se numa única justificativa.

A produção incessante de ideias e o aumento da intensidade da vida urbana fermentam impactos e desvarios. As cidades trazem o desconhecido e ampliam os negócios. Outros hábitos se instalam, pois as invenções modernas apressam as trocas de modas e de sentimentos. Tudo isso não anula o passado. A história sobrevive com os entrelaçamentos dos tempos. Como o domínio da tecnologia, os objetos passam a ocupar lugares de pessoas. Há um grave esquecimento do humano, devido à valorização do status social com a acumulação de mercadorias. O fetiche se materializa, na medida em que o alfabeto da esperteza prospera, sem impedimentos.

O pó da ruína  agrega-se às estéticas renovadoras. Nem todos se conformam com os sons e os desenhos que substituem as concepções realistas ou desfazem as lembranças das pinturas de Giotto(acima), Da Vinci, Miguel Ângelo. O modernismo deu respostas surpreendentes às inquietações do eu. Surgem as vanguardas que trabalham outras representações. A subjetividade se apresenta, de forma decidida, envolvida com as leituras do romantismo e as interpretações freudianas. Salvador Dali, Picasso, Magritte transformam leituras do mundo e significam geometrias inesperadas. Não dá para testemunhar o ir e vir da história, sem as transgressões.

O retorno não sinaliza com o desejo de um paraíso perdido, mas serve para reformular ou misturar ansiedades que pareciam sem ânimo. É preciso compreender que a tradição sustenta o que aparece, mesmo que o culto ao novo se mantenha. O vínculo, com o passado, é uma maneira de exercitar  a autonomia. Se o amor é a maior das virtudes, como desmontar as lembranças, se ele requer continuidade e não fragmentações radicais? O  absolutamente encantado é uma impossibilidade, porém mora nos corações.  Ajuda a se desviar das perdas e dos desencontros. Essa confusão é permanente. Não estamos pendurados em escalas infinitas. A relatividade é o contraponto da respiração.

Tropeçamos. Mergulhamos. Cruzamos desertos. Decifrar as perguntas das esfinges da vida é uma navegação, guiada por estrelas ou instrumentos computadorizados. Há escolhas: prefere um submarino atômico ou embarcação mítica de Ulisses? As fronteiras estreitas das narrativas são vestígios de experiências. Passamos de uma narrativa  para outra, desacompanhados de profecias. Muitas vezes, não cabem atrevimentos e nos curvamos. Os horizontes brilham e imobilizam, com cegueiras instantâneas. A agonia, de cada momento, possui o seu avesso.Entre eu compro, eu sinto, eu penso, eu viajo, nos abraçamos com o inventar exaustivo de ações e palavras. O desencantamento intimida, mas rompe com o descanso adormecido na desconfiança.

As lembranças se penduram na vida e no ritmo

 

Há lembranças que não deixam de aparecer. Trazem aberturas para o passado. Gosto de reparti-las. A satisfação de construí-las não deve ficar dentro de esconderijos. Balançar a vida é animar a gangorra e aproximar-se do querer-bem. Nos anos 1960, estava entrando na adolescência, como dizem os educadores. O mundo fervia e minha cabeça não sossegava. Não faltavam sustos. Sempre tive medos de fantasmas e procurava não dormir sozinho. 1962 veio a vitória na Copa do Mundo.Vibrei muito. Minha paixão pela bola me acompanha e sacode meu coração, sem precisar de muitas metafísicas. Aquelas imagens, dos dribles de Garrincha, não me abandonaram.

Nem tudo simboliza alegria. O golpe de 1964 foi um sufoco e uma perda política. Nunca aprovei nada que ofuscasse o desejo de liberdade. A repressão cortava sonhos e intimidava esperanças. Ficava amargurado, observando outras pessoas se sentindo contempladas com a violência e os discursos da salvação nacional. Há quebras que compreendia, mesmo com as confusões e os cercos familiares. Não simpatizava com o golpe e mostrava minha inquietude. Ele firmou-se e chegou aos anos 1970, apesar dos desacordos e a vontade de luta de outros grupos sociais rebeldes. Caminhos  cruzavam-se e chocavam-se. Os ruídos não foram poucos.

As recordações se estendem, atravessam planícies e pulam abismos. A guerra do Vietnã tensionava as relações internacionais. O gigante norte-americano sofria com as resistências dos vietcongs. Os debates eram intensos, as armas bombardeavam produzindo genocídio, mas a vitória dos Estados Unidos terminou não acontecendo. Muitas perplexidades, misturadas com ousadias, fazendo a sociedade olhar seus contrapontos com ansiedade e desânimo. A história arrasta desequilíbrios e, também, desfaz arrogâncias.Tudo isso passa, em segundos, na minha memória. A síntese abstrai detalhes, porém não apaga emoções. Assistia, na TV, a um concerto em homenagem a George Harrison, mergulhando no ritmo dos Beatles. Junto mim, parte da família, atenta e deslumbrada.

Silêncios, harmonias, falas soltas. Os sentimentos não se distanciavam.  Via-me, em outras situações, e me encantava. Todos estavam confraternizando-se no mesmo ritmo. Uma tarde chuvosa de domingo, depois de um longo almoço, dividir momentos, tão incomuns, avivam energias. É preciso descanso, para suportar as notícias insistentes que provocam dores e desenham sinais de apocalipses. As nostalgias não revelam, apenas, desconfianças com o presente. Nossa tarde musical, começou com um pedido de uma criança de dois anos. Ela é fã das músicas dos Beatles e as curte com afeto e paciência. Era um ritual.

Como os tempos se entrelaçam e criam diversidades incríveis? Como a morte e a vida se estranham, em algumas fantasias, e pensamos haver conquistado a eternidade ? Uma vez, escrevi um texto sobre o desacontecimento. Tentava seguir trilhas que me livrassem do extraordinário. O toque do diferente me seduz, desde que  seja compartilhado e não guarde traços do  aparentemente imposssível, porém se envolva  com a sensibilidade, sem justificativas intelectuais. A frieza e a objetividade não me causam bons alentos. A música de George e a guitarra de Eric Clapton transcendiam. O som nos iluminava, sem a necessidade de esforço, nos carregava para uma meditação involuntária. O tempo não exigia nenhuma medida. Flutuava.