Releituras: as permanências de Prometeu
A leitura de Prometeu Acorrentado, de Ésquilo, é indispensável para quem gosta de refletir sobre o humano. As tragédias gregas nos trazem inquietantes afirmações. Prometeu revoltou-se, contrariou a vontade dos seus superiores, quis reinventar as hierarquias. O texto de Ésquilo ganha força com diálogos surpreendentes. Ficamos perplexos e encantados. Quanta coisa dita que merece atenção ainda hoje ! Apesar das transformações, a cultura não cessa de nos atiçar, as permanências existem e temos que observá-las.
O historiador está construindo o presente, porém articulado com que foi vivido, companheiro da memória. Esquecer convivências e voltar-se para a ansiedade do futuro desmonta entendimentos. Há fantasias, máscaras, lembranças que não podem ser desprezadas. O teatro grego nos chama para mergulhar em reflexões que moram nos sentimentos mais antigos. Ser escravo das ideologias do pregresso é um engano fatal. Prometeu é um mito, possui significados que não se foram e que mostram que o tempo histórico é uma invenção social.
Romper com os deuses é um ato de audácia e astúcia. Não se deve, contudo, nomear deuses ausentes das contrariedades humanas. A onipotência, a onisciência, a onipresença são atributos celebrados em todas as sociedades. Se há um deus que domina as representações contemporâneas, há também relações que garantem a supremacia desse deus e sua singularidade. As religiões se conflitam na suas buscas de soluções para convencer e testemunhar a eternidade.
Prometeu não abandona os deuses, apenas denuncia suas traições. Parece anunciar que o campo do poder não possui transparência. É uma disputa intermediada por impaciências que movem situações. No entanto, as vacilações existem e não há garantias de impérios divinos indiscutíveis. Há espaços para deslocamentos, fraquezas, amores, invejas. Zeus não é imune, apaixona-se, pune, sente-se ameaçado.
Ésquilo nos coloca numa narrativa que se estende. Por mais que dividamos a história há vestígios que riscam os caminhos e não se cansam de articular memórias. O dom da profecia se mistura com as recordações. Quase nada sabemos das origens, nem por isso desprezamos as curiosidades. Os mitos e as lendas não são exclusividades de uma época, nem loucuras perdidas de fantasias ingênuas. É impossível produzir fronteiras que não se mexam.
As leituras de obras do passado despertam a imaginação. O amanhã é a certeza da mudança? Por que tantas escatologias? O começo e o fim nos provocam. A mortalidade nos incomoda. São questões atravessadas nos sonhos. Inventamos ficções. Elas não são inúteis, mas nos ajudam a especular sobre a profundidade dos mistérios. Prometeu reage, firma a dignidade, afirma a crueza do poder. As indefinições escutam os sentimentos. O medo acompanha as aventuras.
Olhar para os tempos remotos é refundar expectativas e observar as continuidades da culturas. Quando as rupturas se colocam como soberanas, há perigo de apagarmos os fundamentos. Prometeu se diverte com suas habilidades e se agita. Renega as negociações, desconfia das amizades invadidas por interesse. Transforma a vida humana, festeja o conhecimento e o amor. O mundo não é sossego. A história não adormece, é luta. Faz tempo que tudo isso é dito.
You can follow any responses to this entry through the RSS 2.0 feed. You can leave a response, or trackback from your own site.