Aquarius: a navegação de Clara e a memória inquieta

Clara navega, não anda. Tem o corpo aceso. Ver o mundo por um espelho incomum. Resiste, sem adormecer na resistência. Movimenta-se dialogando com sua memória. Fica firme na sua história, sem sonhar com a ameaça do pecado original. Não teme, mas julga. Sabe que a vida pode estar em outro lugar e que, hoje, a covardia faz parceria com milhões de dólares. Prefere definir as possibilidades. Lembra Prometeu. Não se sente, porém, acorrentada. Escolhe o caminho e arruína as fatalidades. Sai da tela para socializar suas tensões. Conhece a autonomia, não se curva. Conversa, inventa, segura-se, pula as armadilhas. Sem pertencimentos, o desejo é pálido, a casa é sombria, o amor se desmancha, o deus de Nietzsche se imobiliza. A despedida desconfia do retorno, faz o sangue se apressar.

Sônia Braga veste-se de Clara. A imagem  se amplia como se estivesse no agora de cada um. Clara e Sônia ensinam que a dignidade existe e quem ama os cupins não consegue superar-se. Há uma leitura fundamental dos conflitos,os significados provocam, viajam no tempo. O jogo da história não sacode fora as permanências. Alguns problemas se agudizam. A especulação imobiliária engana e intimida. Estamos cercados de cinismo numa ilha esquisita e monstruosa? O importante é não recuar, ir adiante, não adivinhar, nem militar em territórios que roubam as utopias. Os ruídos agitam e não deixam que os gritos morram. A nudez é um começo, uma iniciação sem ponto final. A medida exata nunca apareceu, está solta no universo ou se recolheu no divã de Freud.

Clara desafia os limites. Ouve a dor do seu corpo, porém navega na sensibilidade. O que outros dizem não é tudo. Belisca. Enraivece. No entanto, os abraços não estão no lixo. Há lugares de celebração do encanto que não sucumbiram às especulações midiáticas. O mundo enche-se de linguagens. É preciso mudar as cores das fachadas, buscar o passado, tropeçar, compreender as crenças que surgem misturadas com os sinos da grana. Maria Betânia canta os dramas. O brega e o chique imprimem afetos.  Existiria só harmonias ou os deslocamentos são constantes? Quem pune será punido? O gozo tem moradia ou apenas assanha a imaginação? Um dia, às vezes, dura um século, deprime as energias ansiosas e febris.

O cinema não foge do cotidiano. Produz representações. É impaciente, traz a inquietude, desperta, fere os nervos de aço. Ele toca quando puxa a corda da interioridade. Negar os labirintos estraga a reflexão. A busca de equilíbrio retoma incertezas e quebra a euforia de quem desenha a felicidade com formas eternas. Fazer  cultura é contemplar,  não é coisa de vagabundo. O que seria do humano sem a história? O capitalismo gosta de sínteses, de banalizações, de mostrar paraísos que encobrem infernos. Quem se declara ingênuo aposta na salvação? Clara não anula o heterogêneo. A noite pode cultivar pesadelos, mas ela passa arrastando vestígios inesquecíveis. Quem não aprende se espanta com a arrogância do seu próprio velório.

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