Travessias silenciosas do coração e do mundo

A agitação do mundo não admite meditação. Poucos momentos podem ser contemplados com silêncio, ternuras no olhar, desejos de não correr. Os mandamentos da velocidade são soberanos. As resistências acontecem e os sentimentos não se perdem na homogeneidade. A questão é aprofundar o sentimento pelo outro, acreditar na saudade e achar que vale não ficar envolvido, apenas, pelas atrações dos interesses. Há uma acidez na crítica daqueles que consideram o afeto um desperdício, um exercício de filantropia e fingimento. Seguem a trilhas de juntar conquistas, entrar nos labirintos do valor de troca e fazer da vida uma loteria incessante e perigosa.

O debate sobre a cultura e suas diferenças marca estudos, não se esgota. Imagine o cotidiano na Palestina, visite São Paulo, solte-se numa praia deserta, sem vendedores ou barracas de cerveja. É sempre bom sair das nossas circunstâncias, quebrar as melancolias, e mergulhar na diversidade. O sonho nos traz outras cores e formas. Não precisa  medir as fortunas, organizar competências. Não se trata de configurar ingenuidades. Se o mundo estivesse dominado por uma violência absoluta, a história estaria ameaçada e os caminhos ocupados por abismos. Há espaços que se conflitam, mas também os que desmancham as certezas dos senhores da acumulação.

Por isso, a sociedade se abala sem interromper sua travessia. Os silêncios do coração ajudam, pausam as agonias da respiração, avisam que existem os outros e a solidão não é um destino. Quando se estende a objetividade como juízo primeiro e definitivo não se deve cair na ideia de que os sentimentos indicam fragilidades. Somos, interiormente, muitos. As lágrimas não expressam fugas do dor, medo do risco. As lágrimas provocam diálogos com as intimidades do eu. Os discursos racionalistas terminam esquecendo que o humano não tem rota determinada, balança-se, hesita. A complexidade não é fantasia teórica. Ela percorre os instantes.

Cada um morre duas vezes. Primeiro quando deixa de viver. Depois quando ninguém mais se lembra dele. O esquecimento é essa segunda morte. Aqui para derrotar a morte basta deixar um vestígio. Esse vestígio é a obra. A obra pressupõe a atividade criadora. Essa sábia reflexão do filósofo Marcel Conche nos atiça para formular perguntas. A morte se entrelaça com a saudade. O corpo se desfaz, mas a memória desenha recordações, inquieta-se, dilui pesadelos, luta para fixar permanências. Os vestígios de cada um assinalam seu estar no mundo, sua relação com a solidariedades, as escolhas que não esvaziaram sua travessia.

Não é à toa que há inúmeros rituais de despedida, celebrações, perplexidades, desesperos. Tudo isso acompanhado de julgamento, revolta contra a precariedade de vida ou de exaltação à força da divindade. Muitos mistérios, divergências, ruídos de argumentos inconformados. Estamos numa sociedade onde o tempo da produção é dominante.  Apesar  da prevalência da técnica, das euforias com os benefícios materiais, sobram indagações. Não é, somente, o ir e vir da crença religiosa que assanha a dúvida e a possibilidade da salvação. Inventamos a cultura para buscar as respostas,  não há muito jeito para obtê-las sem deslocamentos.

 

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