O cais da saudade desenha passados e lembranças

O presente está firme. Há desconfortos visíveis, mas o saudosismo não encontra espaço para se espalhar. O negócio do capitalismo é não firmar nostalgias. Não significa que as lembranças devam ser expurgadas da memória. O capitalismo exige cálculos, medidas, investimentos. As recordações não morreram, mas entram na lógica do mercado, na exaltação do consumo. A história também se veste das cores das mercadorias. Não é preciso ir  longe para perceber que mundo se agita com as novidades, fecha os olhos para os disfarces, gosta do aqui e do agora. A saudade é sentimento profundo, não, apenas, o fluir das lágrimas. Ela flutua no tapete mágico do tempo, redescobre alegrias desprezadas, amores mal compreendidos.

Não se impressione com o surpreendente da saudade. Ter o domínio dos mapas da vida é uma ilusão. Tocamos nas suas ambiguidades, porém sobra tanta coisa. A velocidade da vida cotidiana nos joga para contar segundos e planejar. Nada mais badalado do que o poder de organizar agendas. Os senhores dominantes têm seus minutos distribuídos,  encontros definidos com exatidão. A conversa solta é sinal de desperdício. Assim, fala o noticiário dos assessores especialistas nos detalhes, com  astúcias políticas e  iniciativas para proteger seu grande chefe. A objetividade traz, radicalmente, a velha lei de custo e benefício para o cenário contemporâneo.Colecionamos lembranças, mesmo como toda onda de transformar os valores de uso em valores de troca. As urgências distraem a respiração dos sentimentos.

Por que avivar saudades se há tantas saídas para a vida e tantas aventuras anunciadas, vendidas, emprestadas, enfeitiçadas? Não consigo esquecer da perda crescente de autonomia, substituída pelo explodir da grana. O afeto se subtrai, porque deixar a emoção navegar é anular a necessidade de chegar pelo caminho mais curto. A vontade não é só um complexo de sentimentos e pensamentos, senão também, e antes de tudo, um afeto; a paixão de mando (Nietzsche). O mundo é outro. Antes não havia TV, redes sociais, celulares. As fofocas tinham o concreto do bate-papo pessoal. A pressa destrói a intimidade, impossibilita o suspiro, fragiliza o encanto. Por isso, se afirma a vitória do amor líquido ou as mudanças no amor para se adaptar ao desfazer-se dos instantes. Vivemos numa sociedade administrada,  ligada na produção de valores materiais e no controle da emoções.

O cais da saudade não é permanente. Ha passagens da vida que fogem e nem adianta buscá-las. Estão escondidas nas escuridões  vastas dos labirintos. O diálogo entre passado e presente possui os traços de um museu que se desloca de dentro para fora de cada subjetividade. Os objetos se estendem por cada território. Temos lugares e épocas. Temos interesses e desânimos. Tudo se articula quando os sentimentos se alargam e emudecem a matemática seca de alguns economistas. A saudade se completa quando se amarra na transcendência e traduz os azares e as sortes da vida. Hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice (Italo Calvino). Há profecias construídas pelo avesso. Não mostre espelhos ao rosto da sua saudade.