Raul Seixas e o meio do mundo sem fim

Conheço as músicas de Raul. Gosto das letras e dos ritmos surpreendentes. Elas fazem parte de todos os mundos e de todos os tempos. Resolvi assistir ao filme de Walter Carvalho sobre as instigantes travessias e travessuras de Raul. Sai emocionado do cinema. Curti cada pedaço do documentário com o coração batendo forte e deslumbrado. As imagens ajudaram a compreender melhor as descobertas e ampliar o olhar sobre os significados do que ele viveu. Elas nos abriram espaços para visualizar o balanço  da obra do artista e suas (des)continuidades com o mundo.

Raul é indefinível. Não cabe em rótulos. Vivia apaixonado pelo que compartilhava, passava vibração incomum,  acreditava  no inesperado. Enfrentou um período de muitas censuras, mas seu humor desmontava qualquer armadura. Era uma metamorfose daquelas que Kafka não poderia imaginar. O importante era seguir o desafio, não se esconder, multiplicar os espelhos para ampliar a performance. As certezas flutuavam, as dúvidas agitavam a criação. Havia uma inquietude que não registrava medo, uma quebra de qualquer aparência de mediocridade. O que fez, ficou. Ouro de tolo é uma crítica fabulosa ao capitalismo e às tolices da sociedade de consumo. Raul captava os contrapontos, infiltrava-se no novo, sem cerimônia.

Era de todas as cores e de todos os estímulos, viajava entre o sagrado e o profano, sem constrangimentos. A saudade das suas ousadias cresce vendo o filme. Elas desenham concepções alternativas, por isso não merecem comparações. Raul teve seus ídolos e parceiros, não se perdeu nos trapézios da mesmice. Polemizava, porque não desprezava os mistérios. Sentia a imensidão do mundo e as configurações instáveis da cultura. Buscava respostas, não queria fixar-se em desencontros. Não pedia que o glorificasse, sua ironia entretecia refinamentos e solturas.Vivia como um arcanjo que inventava paraísos de afetos e encantamentos.

O mundo de Raul possuía as tintas do apocalipse, assusta, ainda, os mais comportados. Transcendia seu tempo. Ouvi-lo traz recordações, porém atiça os que pensam na complexidade. Portanto, entrelaça-se com as danças do tempo construindo sua arte e tentando equilibrar-se no desmantelo. Observá-lo é sempre uma aprendizagem. A dor não se ausentava da sua vida, não inibia sua doçura. As armadilhas do mundo trazem reviravoltas, incentiva quem não sossega com a infantilização comandada pelo mercado dos grandes lucros. O artista quando firma sua sensibilidade não cai fora da história. Estende suas palavras, seus sons, seus devaneios.

A dimensão de Raul Seixas está na sua obra que não esquecia seu corpo e os fascínios. Foi seduzido pelo rock, pelas drogas, pelas muitas companheiras. A sedução é uma travessia de mão dupla e curvas perigosas. É um risco que não temeu. Quem sente que o mundo é vasto, continua na vida, faz da morte um símbolo, uma pausa, um desfazer-se. O documentário de Walter Carvalho assanhou a memória, retomou histórias pouco lembradas, não mascarou as incompletudes do humano, exigiu encontros impensáveis. O existir não admite paradas, ele se mistura, por isso sobrevivemos. Quem não se insere no coletivo, se despedaça no presente. Não era o caso de Raul.

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4 Comments »

 
  • isak disse:

    Fascinante, ele fez música!

  • Isak

    Raul tem lugar especial.
    abs
    antonio

  • Silvia disse:

    Cresci ouvindo meu pai, arranhando no violão as músicas do Raul. Aprendi a gostar daquelas letras. Depois me encantei com o homem polêmico e irreverente que ia descobrindo com os muitos discursos que ouvia e lia ao seu respeito. E, finalmente, me emocionei quando uma aluna bem jovem que na época fazia 8º série me presenteou com um mp3 com quase todas as músicas do Raul, ela me fez retornar aos anos de minha infância e perceber como os grandes artistas vão marcando gerações com suas sensibilidades que ultrapassam as fronteiras do tempo e das imposições culturais.

    Grande abraço

    Silvia

  • Sílvia

    É sempre bom reavivar memórias que nos guardam sensibilidades.
    abs
    antonio

 

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