Martha e Freud: promessas amorosas e expectativas
Freud é polêmico. Ainda resta sobre ele muitos mistérios, alguns fermentados pelos seus críticos e oponentes mais severos. A revista Cult, de setembro, publicou um dossiê sobre suas relações amorosas com Martha. São cartas que estão sendo publicadas na Alemanha. É interessante para conhecer amores pronunciados, mas pensar também sobre aquele tempo tão diferente do pragmatismo contemporâneo. O que não mudou? O mundo está se encontrando com caminhos solidários ou segue punindo quem elege seus sentimentos como base da convivência?
Na aparência, tudo se mostra confuso. Muitas mercadorias e cartões de crédito incentivando competições sem rumos. A sociedade de consumo tem um pulsão forte para descartar os afetos. Gosta de novidades, de formas brilhantes, de navegar em barcos acelerados. A globalização traz agitações e pressas, mas não supera impasses sociais, nem desmonta estruturas de corrupções frequentes. Veja com está a violência no México, no narcotráfico, ou mesmo a fome na Somália. Exemplos passageiros, porém profundos. Os anúncios da modernidade se diluíram, o autoritarismo comanda comportamentos e a democracia não se firma.
Freud ficou assustado, na época, com os muitos desmantelos da cultura. As tecnologias não renovavam o bem-estar, para todos, porém promoviam guerras e disputas acirradas na geopolítica. Que espaço existia para a proximidade dos sentimentos ou para configurá-los num universo de sossego? Freud não era otimista. Ressaltava o individualismo, duvidava das crenças cristãs e observava que a felicidade é um equilíbrio instável. Assinalava, como mestre, as ambiguidades que correm pela vida. Não há lugar de redenções prolongadas. A incompletude é uma marca perene.
Martha foi sua grande companheira. Nas cartas, não ele esconde seus encantos e a vontade de estar com ela. É uma correspondência extensa e ativa, antes da concretização das cerimônias do casamento. Há cuidados, troca de confidências, descrições dos cotidianos, como em todos escritos de parceiros. Há o desejo de repartir os momentos, de constituir família e instituir a segurança nos atos que afirmam o amor dos dois.
Conhecer os detalhes é difícil. Nem sempre, as interpretações abrem revelações, porém disfarçam, também, angústias e ansiedades. Freud preparava-se para profissão. Tempos árduos para a comunidade judaica. Ele não subestimava os obstáculos, acreditava no poder da disciplina e da coragem. Martha compartilhava as expectativas. Estimulava as buscas de Freud, a dedicação à ciência. Entrelaçava-se com as projeções do futuro fundador da psicanálise. Não se cansava de elogiá-lo. Os casais se repetem nas suas andanças pelos mundo.
Não há como criar um amor inquestionável, quando tudo está sendo vivido pela primeira vez. O romantismo possui seu ritmo, mas os dissabores também. Não dá para formatar convivências que consagrem a velha história da cara metade. Os mitos não se afastam, contudo, do amor. Os sonhos acompanham os passos mais inocentes de quem nem se toca com as muitas imperfeições que desenham o afeto. Freud e Martha parecem ser realistas com os limites que os cercavam. Não podiam prever o que seria a família, como enfrentariam as contradições. No entanto, não colocavam desconfianças. Juntavam-se ao aconchego das certezas. Martha, a dona de casa, e Freud, o estudioso, aguardavam o vaivém do futuro.
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Antonio,
Lendo o seu texto pensei na imagem da bússola e os clássicos pontos cardeais: norte, sul, leste e oeste. Como afirmou o poeta, a “alma humana é um abismo” e não se guia por esses pontos. Inspirado no seu texto, pensei que a bússola humana possui outros pontos: ambigüidade, incompletude, amor e silêncio…
O silêncio, ou “a gente mesmo, demais”, rumina um olhar sereno sobre os outros pontos. E o amor, chuva fina que alivia o calor do deserto, enche o nosso coração de uma alegria frugal que nos ajuda a aceitar os pontos cardeais da bússola humana e os seus mistérios.
marcio lucena
Márcio
Você fez uma bela reflexão. Trouxe emoção. Isso é bom, move a sensibilidade.
abs
antonio paulo
Antonio, escrever sobre o amor, pronunciá-lo dessa forma é um ato bastante ousado, pois esse é um tema transcendental,ultrapassa nossa limitação humana.
E essa pergunta: “O que não mudou?”
Talvez a ousadia seja o ingrediente fundamental do amor.
Quem ama ousa, quem ama vivencia o companheirismo, a busca da proximidade, do encantamento…
Deseja estar com o outro, elogiá-lo, repartir os sonhos, celebrar o viver cotidiano e como, belamente, ensina Rezende “instituir a segurança nos atos que afirmam o amor dos dois”…
Ainda bem, Antonio, que “os casais se repetem nas suas andanças pelo mundo”. É a prova que esse sentimento mágico perdura e continua a buscar um “amor inquestionável”, sem medo de viver dissabores, limites, contradições…
Capaz de “juntar-se ao aconchego das certezas”, em meio ao “vaivém do futuro”.
Mui belo!!!
Bjs
Flávia
Flávia
O amor tem permanências. Mas é desafio. Muita busca e energia que surpreendem.
bjs
antonio