O mundo visto das janelas e os seus olhares

Há milhões de rostos ocupando os espelhos do mundo. Gestos soltos acompanham caminhadas em buscar de saber o que restou do corpo. O tempo passa e fabrica rugas e inércias. O rosto e corpo conectam-se com cremes milagrosos, mas com validades efêmeras. A alma continua moribunda, alarmada com tantas preocupações. O visível mostra ruínas, o novo se desmancha, com rapidez, e a sociedade pedindo o descartável. Tudo se esgota, porque a vida virou uma maratona estranha.

De qualquer maneira, o mundo existe para ser olhado. Imaginar é preciso, para não se esvaziar nas tarefas escravizantes do cotidiano. Respire e pense. Ande. Observe. Conte as janelas da sua moradia. Uma matemática fácil, nada de fazer cálculo com as teclas do celular.Não adormeça, porém, na quantidade. Pelas janelas, você vê parte do mundo e exercita sua curiosidade. Sair do interior, às vezes, frio, o faz esquentar, com os ruídos dos outros.

O que pode ser contemplado da janela do seu quarto ? Desligue-se das lembranças das televisões ou da últimas manchetes sobre a violência policial. Não se limite ao movimento. Atente para o que está parado. Não negue as distrações. Sua janela é de vidro? Prefere não abri-la? Não conviva com artíficios. Um simples ato diz muito do que pulsa no coração. Libere-se. Deixe entrar o que vem de fora. . A luz e o calor despertam. Esqueça a seriedade das cortinas. Elas são ótimos esconderijos.

Faz sol. Lá estão estacionados os mesmos automóveis. Os escritórios estão com as luzes acesas. Talvez, uma sutileza, porém revela agilidade na forma de trabalhar. Sempre há pessoas que estão passando , pela primeira vez, pelas calçadas da sua rua. A diferença compõe o quadro, como numa pintura de Picasso. É importante estar atento às formas e aos sentimentos. Casais de namorados, vendedores de cds, meninos de bicicleta, mulheres apressadas, cachorros vadios, ônibus carregados de sonhos anônimos.

Mas quem garante a exatidão? Posso da janela criar fiçcões. Por que se fixar no real ? Estenda o seu olhar e retome o último romance que leu. Embriague-se com o poder das palavras e suas malandragens. Vale não haver  escassez de loucos. Uns seguindo-se aos outros, em rosário. Como contas de missanga, alinhadas no fio da descrença ( Mia Couto). Especule. A objetividade não é resposta divina, é desenho humano. O desconhecido  estimula a fantasia e inibe certas amarguras. Decrete, portanto, a extinção da mesmice, por alguns instantes. O alívio encherá seu quarto de energia.

Desfazendo-se das correntes, chame a sua tristeza e faça dela uma ponte para mergulhar em outros sentimentos. A janela permanece aberta. É um símbolo recorrente. Significa que a possibilidade se inquieta e você não possui, apenas, uma única identidade. Sua moradia física não é o palácio da monarquia absoluta, no entanto suas ilusões podem superar as promessas dos demagogos. A cultura é um leito imenso, com margens frágeis e fronteiras de papel. O desejo simpatiza com o infinito, mesmo que se abale com o sofrimento. Pior de tudo é se fechar, conversar com os fantasmas. Testemunhe o silêncio que nunca ouviu.

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4 Comments »

 
  • Zélia Gominho disse:

    A palavra é uma benção quando é bem distribuída. O silêncio que sugere me[n]canta a alma. A correria é tanta, ultimamente, que o verso não se completa, se precipita no outro e perde a sinuosidade, a espontaneidade da beleza de fonte que borbulha.
    Gostei do seu texto, belo demais. Lembrou-me tanto o quanto esqueci.

    Um abraço, Zélia.

  • Flávia Campos disse:

    Antonio,
    Você nos convida à janela, então vamos a ela!
    Sinto-me, inicialmente, uma observadora distante, que olha por cima dos telhados das casas… Mas perto do vôo dos pássaros que das pessoas, que vagam lá embaixo, nas ruas…
    É um olhar que não nos permite criar vínculos, um olhar que não se envolve, não se mistura… que se protege do sentido existencial que o Outro pode ter para cada um…
    O território da cidade tem vida… mas, se o que de mais forte move os seres de um ponto a outro são os afetos, e, os afetos medem as distâncias/criam distâncias e (ou) proximidades… da janela só nos resta imaginar.
    Rezende ensina: “Imaginar é preciso. Respire e pense. Ande. Observe.” (…) “Deixe entrar o que vem de fora. A luz e o calor despertam. Faz sol.” (…) “Estenda o seu olhar e retome o último romance que leu”.
    Agora eu entendo melhor por que Jorge L. Borges diz que “a literatura não é outra coisa além de um sonho dirigido.”
    Então se a direção apontada é a do sonho, vamos a ele. Vamos sonhar e retomar ao último poema lido.
    Saio da janela, de um outro jeito, lembrando um fragmento da “arte de ser feliz” de Cecília Meireles:
    (…) “Às vezes abro a janela e encontro o jasmineiro em flor. / Outras vezes encontro nuvens espessas. / Avisto crianças que vão para a escola. Pardais que pulam pelo muro. / Gatos que abrem e fecham os olhos, sonhando com pardais. / Borboletas brancas, duas a duas, como refletidas no espelho do ar./ Marimbondos que sempre me parecem personagens de Lope de Vega. / Às vezes um galo canta. Às vezes um avião passa. / Tudo está certo, no seu lugar, cumprindo o seu destino. E eu me sinto completamente feliz. / Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas, e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê-las assim.
    Obrigada Antônio, Obrigada Cecília, pelo aprendizado do olhar, seja ele o das janelas que se estendem para o murmurinho da vida, seja o das nossas janelas interiores, onde “o desejo simpatiza com o infinito” e nos torna testemunhas do silêncio que nunca, antes, se ouviu.
    Demasiadamente lindo! Vou tomar uma taça de vinho na varanda e brindar a existência ao olhar mais uma vez, as estrelas da noite que revelam as “pequenas felicidades certas”!
    Bjs
    Flávia

  • Flávia

    Você fez uma viagem interessante pela literatura. Merece uma boa taça de vinho.
    bjs
    antonio paulo

  • Zélia

    A palavra é boa companheira. Por isso, a escrita nos ajuda a ir seguindo pela vida.
    abraço
    antonio paulo

 

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