A solidão não silencia, transcende
Há dias de recolhimento. A cidade parece um deserto. Poucos ruídos, gente com sono, sossegos passageiros. O sentimento de solidão se institui e dialoga com passados. Surgem lembranças. Observo que o tempo não poupa imagens. Não há sequência definidas, nem planejamentos conscientes. Tudo dialoga sem testemunhar milagres. Faz bem, mas mostra como o movimento da vida se compreende com acasos soltos. Difícil dizer a força da saudade na existência da solidão. No entanto, os afetos se consolidam quando as turbulências escondem-se do coração e poema ama todas as palavrar com um amor anônimo e coletivo.
A solidão não é muda, possui geometrias curvas. Seu alfabeto não é comum. Sua escrita desenha palavras que fogem dos dicionários. O amor ganha outros significados. Sentem-se distâncias e proximidades. O corpo amolece, as visões dos olhos pintam fantasias. Vejo quadros de Picasso, poemas de Neruda, filmes de Antonioni e busco a ternura do abraço mágico. A solidão se estica quando as fantasias transcendem a materialidade da vida. Não adianta ficar preso nos ponteiros do relógio. É proibido proibir, como diriam em maio de 1968, e anular o desejo, crucificar os mitos, dançar a melodia do apocalipse.
Os isolamentos criam ansiedades. Posso me desfazer de dores envelhecidas, animar paixões que nunca se firmaram e descer para a profundidade do medo. Tudo se amplia ou consigo visualizar o mínimo. A solidão não quer companhias lentas. Prefere o grito que ninguém ouve, porém navega no mais íntimo segredo. Inventa, pois não suporta fixar datas. A solidão é contadora de histórias. Amiga de Chapeuzinho Vermelho, ela conhece as fadas que ressuscitaram os anjos perdidos no paraíso, não risca pinturas que desenham o firmamento. Quem não sabe recomeçar a aventura? Quem não se banha de sombras e luzes sem desprezar a salvação? Os deuses se acordam com o canto azul dos pássaros.
Não se resuma aos tons atordoados da solidão. Esqueça a mesmice e as fronteiras. Verdades e mentiras atravessam pontes de mãos dadas. Não ligue para o ponto final. A vida supera-se quando a interioridade descobre sua forma. sabe que ela muda e você muda. As identidades se foram para um mundo que não tem a lei da gravidade. Concentre-se num tango de Piazzolla. A solidão se envolve com a musicalidade. Escuta, pois acredita que ” a beleza salvará o mundo”. Por que jogar fora as utopias, se o sonho estremece o que parecia morto? Há um trapézio abandonado no circo que Chaplin idealizou. Não zombe, nem acredite que tudo se abre, como uma porta envelhecida.